O MacGuffin: novembro 2013

segunda-feira, novembro 25, 2013

O que tem de ser dito de uma vez por todas (e está muito bem dito)

Bruno Faria Lopes, Diário Económico 25/11/2013

A esquerda ainda sabe quem defende?

"Não assisti ao "encontro das esquerdas" na Aula Magna. Li os artigos de jornal sobre o evento, li o discurso de Pacheco Pereira e vi as imagens da plateia grisalha que as cadeias de televisão seleccionaram.

No final, sobrou aquela sensação familiar e deprimente: entre citações de O'Neill, elucubrações sobre a "destruição do país" e convites insidiosos à violência contra os governantes (que não devem ser perdoados só por virem do decano Mário Soares), os senadores da esquerda e da social-democracia não têm qualquer contribuição realista com que possam influenciar o curso dos acontecimentos ou sequer o debate. Ali se deu uma aula magna sobre o declínio merecido e preocupante da esquerda em Portugal (e na Europa).

Há muitas teorias sobre a fragilidade da esquerda numa altura em que, em teoria, deveríamos assistir ao oposto. Há quem sobreponha simplesmente uma linha de crescimento económico na Europa ao gráfico do número de governos socialistas no continente (a correlação é evidente) para concluir que a esquerda sempre teve dificuldade em governar com menos dinheiro para cumprir promessas. Há quem vá mais longe, como Rafaelle Simone ou Nick Cohen, autores de esquerda que fazem perguntas simples: Os líderes de esquerda ainda sabem o que vale a pena defender? Ainda sabem quem defendem?

Em Portugal, com uma parte da esquerda que não conseguiu ainda renunciar ao comunismo e outra que se faz de morta à espera que o poder lhe caia nas mãos, estas são perguntas com respostas incómodas. O exemplo paradigmático, num contexto de restrição financeira extrema, é a reacção ao corte nas pensões de sobrevivência para quem recebe mais de dois mil euros em pensões. Toda a esquerda (e a "social-democracia" do PSD, que é o PS moderado (sem o casamento gay) gritou "escândalo", mas uma sondagem mostrou que 75% dos portugueses concordam com a medida. Pudera: dois mil euros é quase o triplo do salário médio em Portugal. Pergunta-se então: a esquerda ainda sabe quem defende?

Mas há mais. O Governo acumula erros na eufemisticamente designada "reforma do Estado", corta com pouco escrutínio na Saúde, moraliza de forma constante para cima de um país que vai conhecendo enquanto governa - mas, o que defende a esquerda? A esquerda em Portugal tem uma política para a Administração Pública e a Segurança Social que anule a necessidade de cortes? Ou prefere defender um Estado social iníquo com mais impostos sobre quem trabalha? A esquerda sabe governar melhor dentro da restrição europeia que nos é imposta, e que parte da própria esquerda subscreveu? A esquerda sabe como influenciar a Europa liderada informalmente pela Alemanha de forma a flexibilizar essa restrição? A resposta para (quase) todas estas perguntas é "não".

Políticos à esquerda têm dificuldade natural em moverem-se em sociedades cada vez mais individualistas e votadas ao entretenimento - na vertente económica da política (não dos "valores"), esse é terreno mais amigo da direita. Mas a insuficiência gritante da esquerda e da social-democracia em Portugal é mais elementar: é a incapacidade em discutirem dentro da restrição financeira e do problema concreto do país (competitividade fraca para tanta dívida privada e pública).

Tal fragilidade preocupa porque entrega de bandeja à direita (a esta direita específica, de Passos Coelho) o discurso conveniente do "não há alternativa", reduz o escrutínio e diminui as opções viáveis de política. Por isso, da fuga do PS a propostas duras, aos apelos vazios dos ilustres senadores da Aula Magna, convém não ter ilusões. Não só pelos erros do passado, mas porque se demitem de contribuir no presente, também eles são responsáveis pelo "estado a que isto chegou"."

sexta-feira, novembro 15, 2013

Da hagiografia

Vasco Pulido Valente, Público 15/11/2013

O último rei de Portugal

"Nas cortes do Absolutismo, o poder, a influência de cada um era medida pela proximidade do rei. A gente de importância ficava perto, a gente sem importância ficava longe. Em princípio ninguém falava
sponte sua à pessoa sagrada que representava a ordem política e a ordem social; esperava que lhe falassem e geralmente respondia com as fórmulas tradicionais que a etiqueta estabelecia.

A tentativa de Maria Antonieta para ser tornar “humana” e “popular” (indo ao teatro, por exemplo) prejudicou mortalmente a Monarquia e criou contra ela um ódio universal. Esta digressão vem a propósito da homenagem que a televisão e os jornais resolveram prestar a Álvaro Cunhal, no centenário do seu nascimento. Quase toda a gente, que se resolveu a partilhar as suas memórias do homem, o tratou como um soberano.

De Manuel Alegre a Herman José, não apareceu uma única solitária criatura que se atrevesse, a esta distância, a pensar nele como um homem. Verdade que o homem Cunhal se escondia por detrás da sua figura messiânica; antes de morrer sempre impediu que Portugal soubesse com quem vivia (ou vivera), o nome dos filhos (se existiam), que amigos tinha, como se divertia ou qualquer outra coisa susceptível de perturbar a imagem do “comunista de cristal”, que ele encarnava ou, pelo menos, pretendia encarnar. Não é coincidência que as personagens que por aí o incensaram ignorem quase totalmente a política e se lembrem muito bem de episódios triviais, em que o soberano magnanimamente desce à inferioridade dos serventes e cortesãos para se mostrar bondoso, sensível, irónico e até paternal. Nas memórias que escreveram depois da revolução, os fiéis do “martirizado” Luís era assim que o lembravam.

Como hoje se lembram de Cunhal os militantes do PCP, os “companheiros de caminho” e umas largas dúzias de patetas. O indivíduo que planeava transformar Portugal numa espécie de Bulgária do Ocidente, o promotor do PREC, o responsável pelas “nacionalizações” e pela ocupação dos “latifúndios”, o desorganizador da economia, o inimigo da “Europa”, esse parece que desapareceu. Só resta, com muito sentimentalismo, como ele gostaria, a máscara do
soberano, perante a qual ainda uma pequena parte do país se acha obrigada a genuflectir. A consciência histórica dos portugueses é um óptimo reflexo da inconsciência que os trouxe à miséria e ao desespero."

sexta-feira, novembro 08, 2013

Da genitália desnudada

Vasco Pulido Valente, Público 08/11/2013
Queremos perceber

"A RTP, estação oficial, oferece agora de madrugada (à volta das duas da manhã), ao pequeno grupo dos seus fiéis, pornografia light e um pouco mais, talvez para aumentar uma audiência em risco de extinção. Desde segunda-feira, passou um documentário sobre o Crazy Horse, para quem está particularmente interessado na anatomia feminina e se diverte com o espectáculo, presumivelmente erótico, de um travesti. E passou também dois filmes do artista espanhol Bigas Luna (ou do Panamá, da Costa Rica ou do Peru, é indiferente), em que o light já anda perto do hard e se mostram, dentro da variedade possível, e com grande devoção e um inusitado brilho, exercícios sexuais que certamente contribuem para a educação do povo boçal e a alegria do país.

Não sou pudibundo, nem tenho nada contra aqueles que gostam ou precisam de pornografia, light ou hard, para o seu descanso. Mas não deixa de me intrigar a razão por que a RTP resolveu escolher este audacioso caminho. Por equívoco? Por um acaso feliz no meio da trapalhada vigente? Por uma subtil estratégia de programação? Ou por simples zelo do princípio constitucional da igualdade, a benefício das velhinhas de Trás-os-Montes, sem computador, que nunca foram a Paris, ao Meco ou às praias do Algarve? Por mais que pense não consigo decidir. Nem, de resto, a própria Igreja Católica Apostólica Romana, que sob a influência do Papa Francisco leva hoje estas coisas com evangélica tolerância. Só que desgraçadamente, em tempo de crise, as dúvidas não acabam aqui.

Qualquer cidadão que paga a RTP com a conta da electricidade ou com impostos, a pretexto de que a RTP é um serviço público indispensável, perguntará com certeza se a pornografia light ou hard é um serviço público. O ministro Poiares Maduro já declarou que o futebol (no mínimo, um jogo por semana) era um direito imprescritível dos portugueses. A súbita aparição da pornografia a horas recatadas vem da mesma generosa visão? E, se vem, a que outros campos se alarga ela? Imagino muitos, mas não quero limitar a liberdade criativa da RTP, e menos a do sr. Maduro. De qualquer maneira, a pergunta essencial pede resposta: que espécie de argumentos justificam a promoção (admito que merecida) da pornografia a serviço público? Nós, que a sustentamos, queremos perceber."

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