O MacGuffin: fevereiro 2012

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Don't put all the blame on the booze, man

Miguel Esteves Cardoso, no Público de 24/02/2012:

Não é só o álcool


"No fim do filme, Tintin associado a Spielberg, o capitão Haddock deixa de ser um alcoólico. No Hugo de Scorsese o tio dele morre por continuar a ser.


São ambos filmes pedagógicos destinados às crianças, querendo dizer que o Cinema é tão bom como os livros. Ambos provam que não se pode compará-los.


Pertencem a mundos diferentes. O pior livro de Hergé, a preto e branco, é mais animado do que o filme Tintin. Scorsese mostra muitos livros no Hugo, apresentados pelo vampiresco Christopher Lee, para ver se percebemos que os filmes de George Meliès e o cinema em geral fazem parte do mesmo mundo. Não fazem.


A catástrofe relativista e politicamente correcta - nada vale mais do que outra coisa; é tudo igualmente bom ou mau - é estender-se à crítica literária.


Um dos melhores praticantes é James Wood. Mesmo assim, no New Yorker de 27 de Fevereiro, escrevendo tardiamente sobre Edward St.Aubyn, ele descreve o pai do autor, que o violou e violentou desde os cinco anos de idade, como o "alcoholic, violent father". A ordem é importante: alcoólico antes de violento. Antes Wood arrola os "snobs, drunkards, pedophiles, fools, tyrants and addicts" que ocorrem na pentalogia. Nota-se que o alcoolismo vem sempre antes da pedofilia. É uma questão moral. A pedofilia vem sempre em primeiro lugar. Regressa sempre a história que o álcool é responsável.


Não é. Aquilo que se faz e diz é sempre mais importante do que aquilo que se bebe. Deseduquemo-nos já."

terça-feira, fevereiro 21, 2012

Nós, os «teimosos»

Henrique Monteiro, jornalista do Expresso e Director Editorial para as Novas Plataformas do grupo Impresa Publishing, veio a terreiro defender o Acordo Ortográfico, em artigo publicado na revista Actual, perdão, Atual, dedicando-o expressamente a «Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico». Simpático.

Lê-se, em parangonas: «Duas décadas depois de concluído, quatro anos depois de aprovado por ampla maioria no Parlamento, milhões de euros de investimentos depois, renasce a ofensiva contra o Acordo Ortográfico. Vamos falar de forma diferente? Claro que não! O que há é muita teimosia e alguma ignorância.»

Ponto de partida de Henrique Monteiro: os opositores do Acordo Ortográfico são teimosos e um pouco ignorantes. Supõe-se que os apoiantes do Acordo Ortográfico sejam flexíveis e menos ignorantes. Para início de conversa, nada melhor do que colocar as coisas e as pessoas no seu devido lugar. «Caladinhos, aí, e ouçam o que há a saber sobre esta matéria».

Para além da questão económica-não-deitem-o-dinheiro-para-o-lixo («milhões de euros depois») e da formal-o-respeitinho-é-muito-bonito («aprovado por ampla maioria no Parlamento»), Henrique Monteiro consome duas páginas da revista Actual, perdão, Atual, com um único argumento: se já não escrevemos farmácia com ‘ph’, praia com ‘y’ (como Camões) e pai com ‘e’ – ou seja: se a língua «evoluiu» -, porque carga d’água teimosamente resistimos (plural majestático, atenção) a aceitar mais uma «evolução»?

Ora, no que toca a argumentos, este é de um gigantismo anão. Em primeiro lugar, porque sabota, em definitivo, qualquer ideia de estabilidade da língua. Abre a porta a novas reformas e a mais «milhões» perdidos, à laia de futuros decretos. O que, na perspectiva de Henrique Monteiro, está muito bem: se «evoluirmos» de ‘humidade’ para ‘umidade’, só um teimoso lhe pode resistir. Algum dia podemos parar? Que horror: não! Do ‘para’ ao ‘pra’ vai uma mesquinha vogal que se opõe à «evolução».

Em segundo lugar, é um argumento dúplice: se não houve «evolução» em Portugal, e se se deve aceitar que a língua evolui de forma «natural», para quê forçá-la por conta do que é praticado noutro país de língua portuguesa? Para além de «natural», a evolução pode, afinal, ser «compulsiva»?

Em terceiro lugar, como o próprio Henrique Monteiro reconhece e parece aceitar de bom grado, se a forma de acentuar ou o efeito das consoantes mudas nada ou pouco tem que ver com o modo de escrever, para quê aproximar ou afastar uma coisa da outra, como o acordo parece discricionariamente fazer? Se ‘facto’ se mantém ‘facto’, por que razão ‘acto’ passa a ‘ato’? E como distinguir ‘para’ (preposição) de ‘para’ (do verbo parar) sem o acento agudo? Mistério.

Termino com a transcrição de um artigo do teimoso e um nadinha ignorante Nuno Pacheco (jornalista do Público), intitulado «Omens sem H»:
"Espantam-se? Não se espantem. Lá chegaremos. No Brasil, pelo menos, já se escreve "umidade". Para facilitar? Não parece. A Bahia, felizmente, mantém orgulhosa o seu H (sem o qual seria uma baía qualquer), Itamar Assumpção ainda não perdeu o P e até Adriana Calcanhotto duplicou o T do nome porque fica bonito e porque sim.
Isto de tirar e pôr letras não é bem como fazer lego, embora pareça. Há uma poética na grafia que pode estragar-se com demasiadas lavagens a seco. Por exemplo: no Brasil há dois diários que ostentam no título esta antiguidade: Jornal do Commercio. Com duplo M, como o genial Drummond. Datam ambos dos anos 1820 e não actualizaram o nome até hoje. Comércio vem do latim commercium e na primeira vaga simplificadora perdeu, como se sabe, um M. Nivelando por baixo, temendo talvez que o povo ignaro não conseguisse nunca escrever como a minoria culta, a língua portuguesa foi perdendo parte das suas raízes latinas. Outras línguas, obviamente atrasadas, viraram a cara à modernização. É por isso que, hoje em dia, idiomas tão medievais quanto o inglês ou o francês consagram pharmacy e pharmacie (do grego pharmakeia e do latim pharmacïa) em lugar de farmácia; ou commerce em vez de comércio. O português tem andado, assim, satisfeito, a "limpar" acentos e consoantes espúrias. Até à lavagem de 1990, a mais recente, que permite até ao mais analfabeto dos analfabetos escrever sem nenhum medo de errar. Até porque, felicidade suprema, pode errar que ninguém nota. "É positivo para as crianças", diz o iluminado Bechara, uma das inteligências que empunha, feliz, o facho do Acordo Ortográfico.
É verdade, as crianças, como ninguém se lembrou delas? O que passarão as pobres crianças inglesas, francesas, holandesas, alemãs, italianas, espanholas, em países onde há tantas consoantes duplas, tremas e hífens? A escrever summer, bibliographie, tappezzería, damnificar, mitteleuropäischen? Já viram o que é ter de escrever Abschnitt für sonnenschirme nas praias em vez de "zona de chapéus de sol"? Por isso é que nesses países com línguas tão complicadas (já para não falar na China, no Japão ou nas Arábias, valha-nos Deus) as crianças sofrem tanto para escrever nas línguas maternas. Portugal, lavador-mor de grafias antigas, dá agora primazia à fonética, pois, disse-o um dia outra das inteligências pró-Acordo, "a oralidade precede a escrita". Se é assim, tirem o H a homem ou a humanidade que não faz falta nenhuma. E escrevam Oliúde quando falarem de cinema. A etimologia foi uma invenção de loucos, tornemo-nos compulsivamente fonéticos.
Mas há mais: sabem que acabou o café-da-manhã? Agora é café da manhã. Pois é, as palavras compostas por justaposição (com hífens) são outro estorvo. Por isso os "acordistas" advogam cor de rosa (sem hífens) em vez de cor-de-rosa. Mas não pensaram, ó míseros, que há rosas de várias cores? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Até cu-de-judas deixou, para eles, de ser lugar remoto para ser o cu do próprio Judas, com caixa alta, assim mesmo. Só omens sem H podem ter inventado isto, é garantido."

A ver se nos entendemos

Foi o Partido Socialista que pediu ajuda externa e assinou um Memorando de Entendimento com a ‘troika’. Isto passou-se em Maio de 2011. Ou seja: há cerca de nove meses. Desse acordo, que nos salvou da bancarrota, José Sócrates, então secretário-geral do PS e primeiro-ministro, disse aos microfones, perante as câmaras e o Luís: “foi um bom acordo.”

Esta semana, António José Seguro – do mesmo PS – afirmou ter pontos de vista divergentes. "Não escondo que houve pontos de vista bem divergentes entre o PS e a 'troika' no que diz respeito ao processo de consolidação das contas públicas e particularmente quanto à prioridade", disse.

António José Seguro é livre de dizer o que lhe vem à cabeça, incluindo o facto de, passados nove meses, achar que o putativo «bom acordo» é, afinal, um «mau acordo». De acordo. Mas não perceber que o acordo vincula o Estado português ao seu cumprimento e que qualquer hipotética alteração aos termos e condições do mesmo, poderá apenas ter lugar após Portugal provar que age de boa-fé e que está empenhado em cumprir as suas metas (e nunca, por nunca, unilateralmente), é não perceber nada. Melhor: é demagogia. Da grossa.

Mas é mais do que isso. Os termos e objectivos do Memorando de Entendimento não são um mero capricho do FMI, da UE e do BCE. Trata-se de um programa de «ajustamento» que um conjunto de entidades não propriamente acéfalas, achou essencial pôr em prática no nosso país. «Ajustamento» do quê, ou para quê? Simples: ajustar os gastos às receitas; ajustar o nível de endividamento do Estado à realidade concreta do país; ajustar o padrão de vida à produção de riqueza; para que o país não consuma ou gaste cronicamente mais do que aquilo que é capaz de produzir.

As coisas são o que são, e não aquilo que o «Tó Zé» acha que são: as dívidas contraem-se para fazer face a gastos que suplantam as receitas. Se isso é justificável em momentos específicos e por um período limitado, não é possível fazer disso o padrão ou a regra, sob pena de descontrolo (ou seja: onde chegámos).

António José Seguro devia saber duas coisas simples: 1) as dívidas geram-se, gerem-se e pagam-se; 2) a partir de um patamar de dívida, o serviço da mesma sufoca o país (com juros e impostos) e empurra-o para um ciclo que não é apenas vicioso: é também suicidário.

A receita que nos trouxe até Maio de 2011 é precisamente aquela que a ‘troika’ pretende reformar. De pouco nos serve «pedir mais tempo» ou «esticar o prazo». Adiar é pagar mais tarde e com mais dor. O Memorando de Entendimento pode ter os seus, digamos, «defeitos», mas tem o importante e sublime propósito de tentar ajustar as expectativas à realidade, a produção ao consumo, os gastos ao domínio do possível.

Se não é assim, António José Seguro que nos diga, preto no branco, bem explicadinho, o que faria no lugar do primeiro-ministro. Suspendia o Memorando? Expulsava a ‘troika’? Subia os impostos para financiar o bendito investimento público? Despedia funcionários públicos para baixar impostos para, dessa forma, relançar a economia? Apostava nas PPP para não prejudicar o orçamento? Nacionalizava os bancos e as empresas «estratégicas»? Lançava subsídios, pagos pelos contribuintes ou pelo emir do Qatar, para «estimular» o emprego? Baixava o preço dos transportes públicos e aumentava o ISP? Ah, já sei: «renegociava o acordo» e «apostava no crescimento». Dito assim, é lindo, não é?


(publicado originalmente aqui)

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Blá, blá, blá, blá...

Vasco Pulido Valente, no Público de 12/02/2012

Conversa fiada 
"Os portugueses "reúnem" com um zelo e uma frequência quase patológica. Mas parece que não se acostumaram ainda ao ritual de uma reunião: dizer mal do chefe, preparar meia dúzia de intrigas, combinar o que se vai dizer e como se vai votar, fingir que se "está por dentro" e já se decidiu o que há formal e expressamente a decidir. Isto enquanto se espera. A conversa entre Vítor Gaspar e Wolfgang Schäuble foi típica da ocasião e do ambiente e não acrescenta nada (excepto talvez na cabeça de Seguro) ao que toda a gente sabia sobre a necessidade e a hipótese de um ajustamento do programa da troika para Portugal. O que não impediu horas de conversa na televisão e dezenas de artigos nos jornais, que não conseguiram esclarecer coisa nenhuma e só serviram para acariciar o ego dos peritos. 
E também - é bom não esquecer - para o obrigatório acesso de dignidade nacional. Vítor Gaspar teria sido "servil", Wolfgang Schäuble "paternalista" e "arrogante", atitudes completamente estranhas num país como o nosso, onde a independência e o respeito pelo próximo são uma característica nacional, bem conhecida e apreciada no mundo inteiro. Houve mesmo quem acusasse Vítor Gaspar de se inclinar (ou ajoelhar) perante Schäuble, como se Schäuble não andasse numa cadeira de rodas; e de o ouvir durante dois minutos com paciência e boa educação. O indígena não desculpa estas vergonhosas fraquezas. Ele que nunca esquece a grandeza de Portugal e a história exemplar que nos trouxe a este beco sem saída. E que também não compreendeu o principal. 
Ou seja, que as supostas "declarações" de Schäuble e as respostas cerimoniosas de Gaspar não comprometem nem um nem outro, se amanhã resolverem mudar radicalmente de posição, por conveniência ou por necessidade. Um intervalo de simpatia inócua não muda, ou pode mudar, a essência da questão. No Conselho de Ministros de Berlim ou no de Lisboa, ninguém o levará a sério. De resto, Pedro Passos Coelho e o próprio Gaspar não se afastaram um milímetro da política que o Governo até agora definiu e repete a cada oportunidade: Portugal não precisa de mais tempo ou de mais dinheiro e, tirando uma catástrofe europeia (que não está na sua mão evitar), não os pedirá. O primeiro-ministro não é suficientemente ingénuo para acreditar que uma salvação gratuita ou a simples promessa de um pequeno adiamento não acabassem num segundo com a disciplina e as reformas, que em princípio nos tirarão de apuros. Com o seu arzinho de seminarista, é de resto o que Seguro quer."

sexta-feira, fevereiro 10, 2012

Vivó desacordo!

Miguel Esteves Cardoso, no Público de 10/02/2012

Pela grafia dupla


"No PÚBLICO de anteontem, graças à Cláudia Carvalho e à Isabel Coutinho, estava a solução do desacordo ortográfico. Descobriram-nas nas palavras de dois inteligentes amigos meus: as de António Emiliano, da Universidade Nova de Lisboa, e as de António Feijó, da Faculdade de Letras de Lisboa. Os portugueses gostam tanto de obedecer como de pôr os outros a obedecer. Brigam muito, mas acham que a briga deve acabar por acabar. Quando isso acontecer, uns ganham e os outros perdem. A partir desse momento, os que perdem devem obedecer aos que ganham. Numa coisa, secretamente sinistra, todos concordam: uma vez estabelecida a "norma" (pense na ópera de Bellini), todos devem obedecer.


Porquê? É difícil de ler o Miguel Sousa Tavares no Expresso que segue o AO? Ou o Rui Tavares aqui no PÚBLICO, que não segue? Claro que não. Habituemo-nos então às duplas grafias. Concordemos em discordar.


Nos dicionários registem-se as duas variantes, com a devida indiferença. Daqui a cinquenta anos, ver-se-á quais são as grafias mais e menos populares. É assim que a ortografia irá mudando: naturalmente, mas saudavelmente constrangida por apenas duas versões, ambas correctas ou corretas. Eu leio a última palavra como se rimasse com "forretas" e significasse quem corre e foge mal haja um problema. Mas percebo que haja quem leia "correcto" como analmente retentivo. E exija castigo correcional nas nádegas, somando o cu e o recto.


Vivamos em Desacordo Ortográfico."

domingo, fevereiro 05, 2012

Sigamos o Vasco: vamos mandar à merda o AO

Miguel Esteves Cardoso, no Público de 05/02/2012

Grande Vasco 
"Nunca conheci um homem com o nome de Vasco de quem eu não gostasse. Não posso declarar a mesma coincidência com qualquer outro nome, feminino ou masculino. Os Vascos são abençoados. Mesmo quando exageram (sobretudo o Vasco Gonçalves), é difícil negar que não são movidos por boas intenções e honestidade intelectual. 
Muito me alegrou a primeira página do PÚBLICO de anteontem, assim como as páginas 4, 32 e 36, em que se noticiava e elogiava a decisão de Vasco Graça Moura, depois de ter consultado e obtido o apoio unânime do conselho de administração do Centro Cultural de Belém, de mandar à merda o Acordo Ortográfico. 
António Mega Ferreira é meu amigo mas, mesmo que não fosse e eu julgasse friamente o que fez, nunca deveria ter sido substituído no CCB. Por ninguém. Estava ele ou não estava a fazer um excelente e independente trabalho, como sempre fez onde quer que estivesse? Estava. 
Francisco José Viegas que, por ser um gajo porreiro, foi porreiro de mais, não fez o finca-pé que deveria ter feito. Foi uma atitude inteligente. Mas feia. 
Vasco Graça Moura não é meu amigo mas é como se fosse. Admiro-o e gosto dele, como pessoa. Apesar de ele ser trauliteiro e boçal quando defende o PSD: um partido que respeito mas que ele, lealmente, prejudica com excessivo afã sincero. É uma nódoa que lhe fica bem. 
Em 1985, na biblioteca do Grémio Literário, conhecemo-nos e juntámo-nos no Movimento Contra O Acordo Ortográfico. A luta continua."

sábado, fevereiro 04, 2012

Vamos ter calma

Para nossa edificação discursaram

Vasco Pulido Valente no Público de 03/02/2012

Uma fábula 
"Precisamente na altura em que se abria solenemente o ano judicial, perante o Presidente e os dignitários da corporação, uma cerimónia cuja utilidade está ainda para se perceber, João Luís Mateus Sarzedo, um sem-abrigo do Porto, foi julgado à revelia por um crime gravíssimo. Em 11 de Fevereiro de 2010, João Luís tentou roubar num supermercado do Pingo Doce um polvo (ou uma parte de um polvo) congelado e uma embalagem de champô, duas peças de grande valor que o tribunal achou não serem necessárias para "satisfazer" uma necessidade essencial do arguido ou da respectiva família. Na sua sabedoria, o juiz considerou que João Luís pretendia vender o polvo e o champô para se drogar. O que, de resto, nem conseguiu porque a segurança do Pingo Doce o apanhou e o entregou imediatamente à polícia. O putativo prejuízo do Pingo Doce, se o crime por acaso se tivesse consumado, andaria pelos 5 euros. 
O caso da espoliação deste simpático e sofredor supermercado não é único. Outro sem-abrigo roubou chocolates no Lidl. E os velhos, por exemplo, são uma terrível ameaça: uma velha roubou um creme, também no Lidl; uma segunda velha roubou mais creme em Matosinhos; e uma terceira velha ainda mais creme em Paços de Ferreira. Para já não falar na desaparição em Coimbra de 77 cêntimos de feijão verde, um caso que a autoridade continua zelosamente a investigar. Não sei o que sucedeu ao sem-abrigo do chocolate, nem às velhas do creme. Mas sei que ente si o Lidl e o Pingo Doce perderam, ou se arriscaram a perder, mais de 20 euros. Daí a compreensível severidade da justiça. Como pode a economia crescer com estes desmandos? 
Não admira que João Luís Mateus Sarzedo fosse condenado a uma pena de multa de 50 dias, equivalente a 250 euros (quase dez vezes o polvo e o champô). Uma sentença apreciada pela acusação - o Pingo Doce - que detestaria "dar um sinal errado à sociedade". João Luís, evidentemente incapaz de pagar 250 euros, tornou a desaparecer e com certeza não o encontrarão tão cedo. Entretanto, o Estado gastou alguns milhares de euros com o julgamento, para, como lhe cabe, reprimir a criminalidade: juízes, defesa oficiosa e toda a parafernália do costume. Uma despesa justificável e justificada, que muito contribuiu para o sentimento de segurança em que os portugueses vivem e sem dúvida alegra as magnificências que discursaram para nossa edificação e repouso na abertura do ano judicial."

É lindo

Miguel Esteves Cardoso no Público de 03/02/2012
Então até já 
"Acendemos o televisor e, pela primeira vez, a programação é agradável. Silente, branco no preto, com bom gosto e dignidade, aparece uma notícia feliz: "As emissões de televisão analógica deste emissor/retransmissor cessaram em 1 de Fevereiro de 2012". Que alívio. Que paz. Até que enfim que há uma coisa de jeito na televisão portuguesa. Aquele protuberante emissor de Monsanto finalmente calou-se. Como o papagaio de John Cleese, esticou o pernil, deixou de emitir, finou-se.

O PÚBLICO de anteontem falou em dois milhões de beneficiários do apagão. Enternece que a RTP, a SIC e a TVI estejam dispostos a continuar a fornecer-nos "televisão de forma gratuita". É bonito, sim senhores. A tabuleta esclarece, em maiúsculas, numa fonte elegantíssima: "PODE CONTINUAR A RECEBER TELEVISÃO DE FORMA GRATUITA, ATRAVÉS DE TELEVISÃO DIGITAL TERRESTRE." 
Tanto há para gostar nestas palavras. A sugestão de que se "pode" continuar a ver televisão à borla, embora não se deva. A vírgula a seguir a "gratuita", como quem tosse a meio da frase, envergonhado. E o "através de", em vez de "através da", dá-lhe um sotaque pan-europeu, bem-vindo na nossa aflição. 
Abre parágrafo: "PRECISA APENAS DO EQUIPAMENTO APROPRIADO." Que generosidade. Que singeleza. Que candura há nesta fé que correremos às lojas para comprarmos o "equipamento apropriado". Apertam-se-nos os corações, através de televisão digital terrestre, precisando apenas do equipamento apropriado. É lindo."

O frio como lembrança do futuro

Miguel Esteves Cardoso, no Público de 04/02/2012

O frio 
"Está frio. Seria bom acordarmos ao meio-dia, chatearmo-nos com o tempo e deitarmo-nos às seis da tarde. A hibernação faz sentido. Foi pena a evolução ter-nos roubado essa capacidade, se é que alguma vez passámos por ursos, que é o mais provável. 
Só com muito optimismo se pode dizer, como já ouvi, que, a partir do meio-dia, as tardes parecem as madrugadas frias do princípio do Verão. Está frio e a chatice do frio, para quem tem sorte, é estar sempre a mudar de temperatura. Só na cama, quando se acorda ou depois de amor carnal, é que se fica com a temperatura certa. 
Durante o resto do dia e da noite ou se está frio de mais ou quente de mais, ou, pior ainda, a transitar de frio de mais para não suficientemente quente ou de quente de mais para um frio demoníaco.

Cada abertura de uma porta, cada vestir ou despir de uma camisola, cada entrada ou saída duma casa, dum carro ou duma sala é uma ameaça, um ataque, uma desilusão. O frio é uma lembrança de como dói não estarmos livres de sofrer (embora o resto do mundo nos ache com sorte). 
Está frio. Mas não há ninguém que nos defenda. Até porque estamos, porventura irritantemente, melhores do que os outros todos. Que também não estão com calor.
O frio é a nossa praga, rainha, oportunidade de nos passarmos para o outro lado. O frio que está é uma lembrança do futuro. É um sinal que temos de lutar para estarmos quentes. Cada dia é uma queda física, à espera de uma ascensão de qualquer espécie. Aqueça-se."

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

Herói

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Frankly Mr Shankly

Gonçalo Frota, jornalista especializado na área da música, deitou abaixo o novo álbum de Leonard Cohen. Segundo Gonçalo Frota, Old Ideas (assim se chama ironicamente o álbum) é o disco de um «homem cansado», reforçando esta «nova ideia» com um exemplo: a música Going Home é uma alusão à reforma. Eis a letra:

I love to speak with Leonard
He’s a sportsman and a shepherd
He’s a lazy bastard
Living in a suit


But he does say what I tell him
Even though it isn’t welcome
He will never have the freedom
To refuse


He will speak these words of wisdom
Like a sage, a man of vision
Though he knows he’s really nothing
But the brief elaboration of a tube


Going home
Without my sorrow
Going home
Sometime tomorrow
To where it’s better
Than before


Going home
Without my burden
Going home
Behind the curtain
Going home
Without the costume
That I wore


He wants to write a love song
An anthem of forgiving
A manual for living with defeat


A cry above the suffering
A sacrifice recovering
But that isn’t what I want him to complete


I want to make him certain
That he doesn’t have a burden
That he doesn’t need a vision


That he only has permission
To do my instant bidding
That is to SAY what I have told him
To repeat


Going home
Without my sorrow
Going home
Sometime tomorrow
Going home
To where it’s better
Than before


Going home
Without my burden
Going home
Behind the curtain
Going home
Without the costume
That I wore


I love to speak with Leonard
He’s a sportsman and a shepherd
He’s a lazy bastard
Living in a suit

Repito: Gonçalo Frota é «especialista» em música (no Público). O facto de ele não ver um palmo à frente do nariz, é apenas um pormenor. Até porque, bem vistas as coisas, está inferida na música I’ve Got You Under My Skin, uma alusão à dermatologia.

Um equívoco chamado «cultura»

O lançamento de um evento denominado «capital-qualquer-coisa-da-cultura», parte invariavelmente de dois equívocos: 1.º) a «cultura» é coisa que se pode produzir por atacado, decreto ou encomenda, em local e período circunscritos; 2.º) existe um público ávido por banhos de enriquecimento cultural (dito de outra forma: a procura está assegurada).

Ambos os equívocos parecem caucionar a velhinha e orquestradora presunção de meia dúzia de políticos e apaniguados que, por vaidade, ingenuidade e, nalguns casos, irresponsabilidade, acham justificável criar uma fundação (mais uma) para gerir (ou seja, para gastar) milhões num evento que putativamente deixará a sua «marca», que se acredita ser esta: um importante contributo para inverter o endémico estado de obscurantismo de que padece a nação, dando a conhecer ao mundo – o sinistro desígnio da «promoção» - a «cultura» indígena. Paralelamente a isto, há ainda o propósito de, e passo a citar, dar "apoio a acções de formação com relevância na área da cultura, promovendo a formação técnica especializada dos agentes e profissionais deste domínio ou domínios afins."

“Guimarães Capital Europeia da Cultura” insere-se na longínqua e profícua tradição, saloia e provinciana, de pensar que basta despejar uns milhões (orçamento global superior a 111 milhões de euros) a jusante - dando guarida, durante o processo, às gentes necessitadas da cultura (sempre desgraçadinhas e a precisar de amparo) - para garantir o progresso dos espíritos e a bendita «projecção» («projectar a nação» ocupa um lugar de destaque no Top 5 dos planos predilectos dos políticos e respectivos conselheiros «culturais»).

Não é preciso ler o Eça para perceber o logro que insistimos, ainda hoje, em trilhar. Não resulta instigar, por compulsão e durante um período, «cultura» - seja ela erudita, alta ou popular – se não houver, a montante, um trabalho de educação que desperte o gosto, o interesse, a sede de conhecimento e, acima de tudo, o sentido crítico. Caso contrário, será mais uma tentativa de lançar sementes em terreno pouco fértil - num país, é bom não esquecê-lo, que precisa urgentemente de rever as suas prioridades.
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