O MacGuffin: março 2009

sexta-feira, março 27, 2009

Sobrevivência

Rui Ramos in Correio da Manhã 27/03/2009

Não é só birra

O PSD não aceita os nomes do PS para provedor de justiça. Para o PS, não passa de uma "birra". É isso? Não. O PSD não faz birra – o PSD luta simplesmente pela sua sobrevivência como grande partido.

Para perceber esta história, convém lembrar o que são os partidos portugueses: fundamentalmente, são partidos do Estado, que vivem dos subsídios e do controle dos recursos públicos. Têm as taxas de filiação mais baixas da Europa e, como se tem visto nas "directas", nem os chamados "militantes" mobilizam completamente. Para os partidos mais pequenos, ainda conta a influência em sindicatos ou na comunicação social. Mas aos grandes, é o poder que têm através do Estado que lhes dá importância. Por isso, nenhum deles pode deixar constar que a sua palavra já não interessa nas nomeações para cargos públicos. Seria o sinal para os ratos abandonarem o navio.

As últimas lideranças do PSD deixaram pôr em causa, como mostram as sondagens, o seu estatuto de partido de bipolarização. O PS parece querer obrigar o PSD a reconhecer desde já essa menoridade, tendo talvez em vista criar precedentes para os equilíbrios de algum bloco central. O PSD, como lhe compete, recusa submeter-se. Em alternativa, o PS ameaça entender-se com os partidos pequenos. Estamos a começar a ver o futuro provável da nossa política, se não houver maioria absoluta.

quinta-feira, março 26, 2009

Por estes dias







Se fosse um escravo do prazer...

...este seria o meu livro fétiche:


quarta-feira, março 25, 2009

Becoming a man

"yes, my son, I know you are there"

sexta-feira, março 20, 2009

"a certain book"

Blessed are the merciful, for they shall obtain mercy

Do you, punk?

Não merecem mais

Correia de Campos e mais uns quantos indefectíveis e indignados do PS (militantes ou, como se diz agora, da «área» do partido), a que se junta o insuspeito Lobo Xavier, acharam deploráveis, uns, lamentáveis, outros, e desadequadas, os mais benevolentes, as declarações de Nascimento Rodrigues. Entendem eles que a personagem deveria manter-se calada ou, no mínimo, reservada relativamente a diktats ou pronunciamentos sobre o regime, uma vez que, atenção, «ainda» se encontra em funções. Correia de Campos vai mais longe: enquanto estiver em funções: caluda; após cessar funções: berrar à vontade. Sem querer maçar-vos muito, que o assunto é menor (menor para todos à excepção, certamente, do próprio), há que encontrar um mínimo de discernimento sobre o que se está aqui a passar. Nascimento Rodrigues aguarda, há mais de nove meses, que os partidos do Centrão lhe arranjem um sucessor. As suas funções já cessaram. Por favor, e só por favor, Nascimento Rodrigues mantém-se no cargo, num limbo que certamente não o dignifica e não o satisfaz.

Face ao estado a que este país chegou, devo desde já declarar que Nascimento Rodrigues é um santo. Um homem que resiste, após um mandato onde se deparou com um pouco de tudo (refiro-me, concretamente, aos «problemas» desta jovem democracia), nove meses para se aliviar de algumas verdades (nove meses, no que toca ao emudecimento de verdades, é coisa que não faz bem à saúde de ninguém), só pode ser aparentado de Job.

Pessoalmente, no lugar de Nascimento Rodrigues, já tinha esmurrado alguém e, muito provavelmente, fugido do país (não por medo, mas por nojo). Mas não. Estoicamente, o homem aguentou-se. Tiro-lhe o chapéu, não sem antes lhe apontar o único defeito que lhe vislumbrei em todo este processo: levar a coisa demasiado a sério. Em alternativa ao murro, que é coisa feia, tinha levado a coisa para a comédia e gozado com a situação. No fundo, estamos a falar de Portugal. Os indignadinhos do regime; os que levam sempre tudo tão a sério e na perspectiva «institucional» (quando lhe convém ou não lhes toca, como é o caso); os senhores doutores aparelhistas de profissão; não merecem mais nada a não ser isto: sorrir-lhes na cara, chamar-lhes os nomes que importa chamar (sempre com o tal sorriso) e, pelo meio, dizer meia dúzia de evidências, não vá o povo esquecer-se.

Sim, há algo de podre. E não é na Dinamarca.

quinta-feira, março 19, 2009

Fácies

Sempre que olho para uma fotografia de Nascimento Rodrigues, lembro-me de Abraham Lincoln. Não sei porquê.

Parece que foi ontem há 60

Através deste blogue, descobri que este blogue faz hoje 6 anos. Parabéns. Obrigado.

Cefalópocracia

"O PS já ocupa todos os altos cargos públicos, faz lembrar o Zeca Afonso: 'eles comem tudo'".

Nascimento Rodrigues, provedor de Justiça, "Visão", 19-03-2009

A arte da crónica

Alberto Gonçalves in Diário de Notícias 08/03/2009

Terça-feira, 3 de Março
A CEGUEIRA DO HOMEM BRANCO

O dr. Gomes Cravinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, pediu aos militares guineenses para não serem "mesquinhos" e à Guiné-Bissau o "pleno respeito pela normalidade institucional".

A pertinência dos apelos percebe-se melhor se levarmos em conta que foram proferidos horas depois do assassínio de Nino Vieira. Parece que após demolirem à bomba a residência do presidente, e de este ter emergido dos destroços, os soldados insurgentes aproveitaram para o espancar, o furar com rajadas de metralhadora, o cortar à catanada e o decapitar. A ordem dos correctivos varia de acordo com as fontes, mas é inegável o propósito mesquinho, quase maldoso, do exercício. Na mesma linha geopolítica, presumo que o dr. Gomes Cravinho classifique os massacres no Ruanda de "irritantes" e o genocídio no Darfur de "aborrecido".

Não será o único a fazê-lo. O Ocidente em geral tem por hábito cobrir de eufemismos uma região em que, como a ascensão do próprio Nino Vieira e de inúmeros déspotas regularmente mostram, a "normalidade institucional" se constrói a sangue. Por recorrente que seja, o facto é sempre novidade para os media daqui, que destroçados pela mesquinhez de alguns indígenas começaram anteontem a desconfiar (com mágoa) de que a Guiné é um "Estado falhado".

No mínimo, é uma intuição tardia. A ONG Fund for Peace desenvolveu um índice que justamente mede o grau de falhanço dos estados e a sua tendência para a desagregação. Assim, cada país é pontuado e integrado numa de quatro categorias de risco: alarme, alerta, moderado, estável. Em 2008, nenhuma das nações africanas pertence ao restrito grupo dos "estáveis", nenhuma, com a excepção das ilhas Maurícias, pertence ao grupo dos "moderados", todas se encontram nos grupos de "alerta" e de "alarme", onde aliás a Guiné-Bissau se situa atrás de outros dezoito países africanos ainda mais dados a transformar a chacina num modo de vida. Em suma, falhada é a África inteira.

A dificuldade dos ocidentais em reconhecer uma mera evidência prova que o paternalismo pós-colonial se alheou mais da realidade que o racismo colonialista. Se este nunca se maçou com uma tragédia para a qual contribuiu directamente, o paternalismo só vê a tragédia a custo, preferindo manter a risonha ficção de um continente normal, dividido em estados normais liderados por governos normais, afinal o inevitável resultado dos encantadores processos de independência.

O delírio teria graça se, à sua revelia, em África não vivessem, ou morressem, centenas de milhões de infelizes, no fundo irrelevantes para os criminosos que mandam por lá e inexistentes para os optimistas que pairam por cá.

Quarta-feira, 4 de Março
CORRER COM ELES

O eng. Sócrates fechou o congresso do PS com uma condenação: a das crianças de cinco anos aos "jardins-de-infância", eufemismo para os barracões onde se guardam os petizes da sociedade e da indisponibilidade familiar. Note-se que o primeiro-ministro não prometeu facultar o "pré-escolar" a quem pretender beneficiar do dito. Tudo o que seja facultativo não é com ele. A ideia é recolher os petizes à força, mesmo que os pais não queiram e não necessitem da recolha. O eng. Sócrates justifica: "É assim que se prepara o futuro. É assim que se reduz a desigualdade social." É assim, acrescento, que o Estado se intromete nas vidas alheias muito além do recomendável em democracia.

No caso, não se intromete na minha, que escolhi - enquanto o Governo me permitir - não procriar. Se, porém, escapei de um particular abuso (e sem consequências: a diferença entre não ter filhos e tê-los entregues a instituições compulsivas dos cinco aos dezoito anos roça o imperceptível), não escapo dos abusos restantes, os quais, nestes perigosos tempos, são inúmeros.

Ainda agora, um portento chamado Laurentino Dias, que tutela o desporto ou lá o que é, decidiu "fazer o que for preciso para que Portugal passe a ser um país que faça marcha e corrida de forma organizada". Note-se que o dr. Laurentino não limita ao corpo dele as piruetas que entende vitais. Decerto à imagem do respectivo chefe, cujo jogging deslumbra a Terra, o homem quer pôr os portugueses em peso, e juro que cito, "a andar na rua com vestes desportivas". Francamente, começo a não saber até que ponto esta gente fala a sério. Sei que em Portugal abundam sujeitos em fato de treino, embora geralmente estejam sentados em esplanadas a deglutir tremoços e imperiais. Aparentemente, levantá-los das cadeiras e levá-los a escorrer suor é um factor de progresso.

As cabeças dos senhores que nos pastoreiam são um mistério insondável. De qualquer modo, não nos compete sondá-las: de acordo com a lei, compete-nos obedecer-lhes. Claro que, por enquanto, o dr. Laurentino anuncia as marchas e as corridas (organizadas) como uma opção, para a qual o Governo criará as "condições". Mas o Governo, repleto de objectivos, também já provou que das "condições" à compulsão vai um pequeno passo, em marcha ou corrido. Modestamente, eu tenho um objectivo: daqui a uns meses, gostava de aplicar as palavras "Governo" e "corrido" noutra frase.

Sexta-feira, 6 de Março
UM VENTO QUE NÃO PASSA

Poetas convencionais falam da morte, do sexo, do amor ou de Deus. Manuel Alegre prefere temas mais prosaicos. O homem que já nos brindou com 852 elegias à revolução de Abril (incluindo "Abril com 'r'": "r até de porra r vezes dois") e uma ao futebolista Figo ("e em cada rua é um menino/de camisola número sete") alinhavou agora uns versos sobre contentores. Leram bem: contentores. Pelos vistos, o fascinante assunto não se esgotara na cantiga alusiva de uma banda pop (os Xutos & Pontapés). Não, senhor. Portugal carecia de nova abordagem lírica a essas caixas metálicas que enfeitam, ou mancham, as zonas portuárias.

Alegre acha que mancham, e por isso o Fado dos Contentores, publicado no seu site pessoal (www.manuelalegre.com), bate com vigor nos ditos que se empilham junto ao Tejo e impedem ao bardo o usufruto da paisagem: "Por mais que busques defronte/Nem ilhas praias ou flores/Não há mar nem horizonte/ /Só contentores contentores." Ilhas? É evidente que se trata de uma liberdade criativa, já que depois de Alcântara está Cacilhas, cuja superioridade estética face aos contentores será talvez polémica.

Polémica também é a qualidade do texto, como aliás é típico de qualquer poema que rime "contentores" com "flores", "bojadores", "navegadores", "cores", "dores" e, no singular, "vapor". Sem me querer alongar no comentário, digamos que há alguma urgência em que o PS sossegue a dissidência eternamente adiada de Alegre. Caso contrário, corremos o risco de levar em breve com a Trova da Banca (palpite: "Só um cego é que não vê/a perfídia que se esconde/por detrás da CGD"), a Valsa das Taxas Moderadoras ("Tiraram-te pedra do rim/e cinco euros por dia/ /a pedra saiu assim/o conto de reis doía/fora os dois da cirurgia") e, Deus nos livre, a Balada do Augusto ("Dizias-te resistente/ao domínio da canalha/Hoje a canalha é diferente/E ao lado dessa gente/Ergues malho, dizes malha.")

Se é sabido que custa calar o poeta, é importante que o eng. Sócrates, sempre desejoso de silenciar meio mundo, ao menos tente. É que Alegre é de facto uma voz incómoda - para o eng. Sócrates e, mesmo quando tem certa razão, para todos nós.

Sábado, 7 de Março
CRONOLOGIA DE UM RESGATE

A 21 de Dezembro, o dr. Pinho anunciou o plano de salvamento da Qimonda, mediante um empréstimo de cem milhões (via CGD).

A 15 de Janeiro, o dr. Pinho jurou que o Estado não concederá empréstimos à Qimonda e que esta não recebeu nenhuns cem milhões.

A 21 de Janeiro, o dr. Pinho disse que a Qimonda "tem todas as condições" para manter a laboração.

A 23 de Janeiro, o eng. Sócrates prometeu que o Governo "tudo fará para ajudar a Qimonda".

A 27 de Janeiro, o dr. Pinho afirmou ainda acreditar na salvação da Qimonda.

A 28 de Janeiro, o eng. Sócrates concordou que a salvação da Qimonda não depende do Governo.

A 2 de Fevereiro, o dr. Pinho afiançou a existência de compradores para a Qimonda.

A 3 de Fevereiro, o dr. Pinho admitiu que a falência da Qimonda pode ser positiva.

A 17 de Fevereiro, o dr. Pinho acusou o Governo alemão de nada fazer para salvar a Qimonda.

A 19 de Fevereiro, o dr. Pinho notou no congénere alemão "abertura" para salvar a Qimonda.

A 2 de Março, o dr. Pinho garantiu desconhecer interessados na compra da Qimonda.

A 4 de Março, na Alemanha em comitiva presidencial, o dr. Pinho evitou falar da Qimonda.

Também a 4 de Março, após encontro com Angela Merkel, Cavaco Silva mostrou-se pessimista quanto ao futuro da Qimonda.

A 5 de Março, o ministro Luís Amado revelou que o encontro com Merkel trouxe "desenvolvimentos optimistas" para o problema da Qimonda.

Também a 5 de Março, o dr. Pinho disse que o Governo está disposto a financiar a Qimonda no que for necessário.

Ainda a 5 de Março, Cavaco Silva recebeu "sinais positivos" do ministro da Baviera sobre a Qimonda.

(continua)

Se não explica o empenho em preservar uma empresa inviável e dada a prejuízos monumentais, a novela da Qimonda demonstra o estilo do Governo, uma coisa a oscilar entre o voluntarismo, a intrujice e o desnorte. Convinha que o estilo não contaminasse o prof. Cavaco, apesar de tudo um resguardo de sensatez num tempo em que, ao contrário das memórias RAM produzidas na Qimonda, semelhante bem é escasso.

segunda-feira, março 16, 2009

161

Recebendo a bola da Charlotte, passo de seguida à quinta frase do livro que tenho mais à mão:

"The second Emir lounges about the rigging awhile, and then slightly shaking the main brace, to see whether it be all right with that important rope, he likewise takes up the old burden, and with a rapid "Dinner, Mr. Flask," follows after his predecessors."

Página 161, Moby Dick de Herman Melville (Penguin Classics)

Passo a corrente aos ilustres: João Joana, Luciano, Eduardo, Samuel e Alberto.

sábado, março 14, 2009

Casanova

quinta-feira, março 12, 2009

O GPS Queque

Miguel Esteves Cardoso in Público 12/03/2009

O GPS Queque

Há um aparelho de localização que sempre admirei pela precisão dos resultados. Embora eu não saiba usá-lo - leva gerações de sangue azul -, amiúde o vi em operação.

É o GPS Queque e funciona assim: dois queques encontram-se e um diz ao outro que um terceiro queque está a morar no Estoril. "Onde?" é o primeiro passo. E arranca logo o GPS Queque, num primor de triangulação. Dão-se duas coordenadas queques - as casas dos maiores queques mais próximos - e, zás, já se sabe onde parou o queque tresmalhado.

"Sabes onde mora o Espírito?", pergunta o queque relator. O outro diz que sim. (Não é um teste religioso: "Espírito" é quequês para um membro da família Espírito Santo). "E estás a ver a casa antiga dos Lupis? É ali mesmo ao meio." Aqui, o queque auditor, num ápice, faz a leitura do GPS - quanto mais rápida, mais pontos-queques - e diz "Já sei!" ou "Sei perfeitamente!"

O povo que oiça fica na mesma. É essa a ideia: impedir que seja usado pelas massas. O GPS Queque não é o contador de água, que qualquer bimbo pode vir ler. Se não sabe onde mora o Espírito, não precisa de (nem merece) saber para onde se mudou o Sobral. Este GPS também transmite dados rigorosos de posição social de que nenhuma tecnologia é capaz. Sempre com total pontaria. As coordenadas fornecidas e conhecidas (ou não) revelam o GPS social tanto do queque relator como do auditor. Quanto mais bem, melhor. Eu, um mero possidónio, é que nunca hei-de saber quais são. Estou perdido.

quarta-feira, março 11, 2009

Upper cut

Morais Sarmento tem sido irrepreensível na forma como tem desmontado, algumas vezes já revelando compreensível impaciência, a retórica manhosa e aparelhista de Augusto Santos Silva, no debate semanal entre ambos (TVI24). Hoje, por exemplo, chamou-lhe Beriazinho. Não me ocorreria melhor.

sábado, março 07, 2009

Da relatividade do bem e do mal

O João Pereira Coutinho anunciou a sua saída do Expresso a 16 de Fevereiro, invocando razões estritamente pessoais. Na despedida, como pessoa de bem, fez questão de agradecer à casa e reconhecer que estava errado quando apontava o Expresso como um «saco de papel institucional e cinzento, onde a liberdade criativa não abundava» (tal como eu o fiz no passado por também ser filho da geração O Independente, ascendência que não renego e da qual me orgulho).

Na crónica de despedida, criticou a já clássica e berrante hipocrisia, ou se quiserem, «dualidade» de critérios do Dr. Mário Soares na forma como observa o mundo e, em particular, a América, conforme o agente lhe é ou não ideologicamente simpático. Obama quer encerrar Guantanamo mas recusou-se a abolir, tout court, a tortura nas técnicas de interrogatório. E, horror dos horrores, pretende continuar a estratégia de raptos selectivos e de transferência dos raptados para países aliados dos EUA.

No meio de tudo isto, o Dr. Soares ignora estes «pormenores» e exalta o querido Obama como o obreiro de um mundo fraterno, justo, diferente do que existia na vigência da bête noir Bush. Para o Dr. Soares, parece bastar o facto de Obama – que o Dr. Soares provavelmente considera socialista - ter sido um adversário de Bush e de lhe suceder na presidência. O que era mau e condenável em Bush, é bom ou descartável em Obama.

João Pereira Coutinho não defendeu, não tomou partido nem ajuizou das posições de Obama relativamente à tortura e ao rapto selectivo de potenciais terroristas. Essa não era a questão. A questão era chamar a atenção para as posições dualistas, dúbias e gelatinosas do Dr. Soares, sempre tomadas à luz do maniqueísmo das capelinhas políticas que o Dr. Soares rearranja e convoca como quer e lhe apetece.

Como é óbvio, os comentários a este artigo de opinião trataram de deturpar o que tinha sido escrito e de ler o que não foi escrito ou, sequer, insinuado. E, en passant, escancararam a céu aberto a propensão indígena para a sacralização e beatificação de certas eminências pardas, que se consideram intocáveis por via dos serviços prestados ao país. Ora, Mário Soares pode ter sido o «paizinho» da nossa democracia, o homem que nos colocou a salvo do comunismo e que nos pôs na Europa, o valente presidente que ousou incomodar o cavaquismo. E por aí fora. Aliás, pode ter sido tudo, menos isto: um observador imparcial dos EUA e um conhecedor abalizado da História.

Mas não. Para esta gente, João Pereira Coutinho é «contraditório» e «demagógico», «neo-liberal» e «conservador» (olha aí a contradição…), um «ser humano» (vá lá...) que «não busca desinteressadamente a verdade» (eu pensava que era mais «interessadamente»...), ao contrário do Dr. Soares. Pelo contrário: o homem faz «a apologia do desrespeito pelos Direitos do Homem, defendendo a tortura e o rapto». Acabaram, claro está, a dar o parabéns ao Expresso por se livrarem do tumor contra, acreditam eles piamente, a vontade do próprio.

Pela minha parte, só posso congratular-me pelo facto do João Pereira Coutinho continuar igual a si próprio: capaz de provocar a ira dos iluminados e despertar as ulcerações da praxe. Brindo a isso.

quinta-feira, março 05, 2009

O que tem de ser dito

Miguel Esteves Cardoso in Público 05/03/2009

O autor da cozinha

No Fugas de sábado, o meu mestre David Lopes Ramos, que prezo tanto como José Quitério do Expresso, elogia o
100 Maneiras no Bairro Alto do bom chefe Ljubomir Stanisic que tanto tem surpreendido a conservadora Cascais.

Há ali um parágrafo que parece dirigido àqueles que, como eu, só se interessam pelos pratos que o tempo e o gosto do povo consagraram e que têm pouca paciência para as inovações e para a cozinha de autor. São conselhos amistosos; mais convincentes por virem de quem sabemos ser um tradicionalista liberal no melhor sentido que há: se sabe bem, tudo bem.

Pus-me a pensar nas razões da minha teimosia. A verdade é que nada me interessam as criações de Stanisic ou de qualquer outro cozinheiro que goste de criar pratos temporários e originais. Não acho que - Ferran Adrià à parte, por ser um artista que só por acaso escolheu o meio de expressão culinário - a cozinha seja nem sequer um parente pobre das artes mais pobres. É, quando muito, uma expressão de personalidade. Os cozinheiros, de facto, conseguem pôr-se no que cozinham: o temperamento torna-se num tempero.

Mas os grandes petiscos do mundo não têm autor - seja o frango assado ou o sashimi de sardinha -, e é a presença pretensiosa de um autor que retira autoridade à culinária como arte. Se é boa uma receita, deixa de ser de quem a criou (Bulhão Pato) e passa a estar nas mãos, cruciais, de quem a recria sem querer colher os louros por causa disso. Não é assim que eu vou lá.
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