O MacGuffin: Doppelganger

sexta-feira, junho 24, 2005

Doppelganger

Deparei-me com um problema e com uma evidência, enquanto lia o post que Luis Rainha dedicou à minha pessoa e a Vasco Pulido Valente.

Comecemos pela evidência: as qualidades literária e de argumentação de Luís Rainha são notáveis e explicam, desde logo, o desfasamento temporal entre o tema em apreço e a publicação do post. Quero com isto dizer o seguinte: estas coisas não se escrevem assim, de um dia para o outro. Só a banalidade e a vulgaridade são produzidas em tempo real, quando os acontecimentos ainda fumegam e a actualidade exala o seu inebriante mas baralhador odor. Aquilo que Luis Rainha produziu requer tempo, paciência e dedicação. Estamos na presença de um emérito esforço intelectual, acompanhado de um não menos importante vigor estilístico.

O problema: a expressão doppelganger. O grau de erudição de que padeço - três ou quatro furos acima do de uma anémona, um contentor de furos abaixo do de Luis Rainha - não me permite descortinar tais voos lexicais. É certo, certinho, que tratarei de me inteirar, já de seguida, do significado da expressão doppelganger. Mas seria estúpido, da minha parte, pôr em causa o epíteto. Assumo, penhorado, a minha condição de doppelganger. Estou certo de que Luis Rainha sabe do que fala. Voltemos, por isso, ao miolo da questão.

O esforço intelectual de Luis Rainha, e a clareza de raciocínio daí emanada, manifestam-se passados apenas 472 caracteres (incluindo espaços, o que constitui um recorde absoluto), quando Luis Rainha abrilhanta o auditório e o doppelganger (vou já ver o que é) com o seguinte desabafo: ”Nestes dias, acreditar na mesma coisa toda uma vida parece só ser virtude se estivermos a discutir João Paulo II”.

(Abro um parêntesis. Não posso deixar de vos alertar para a espirituosidade de Luis Rainha, aliada à lucidez e à erudição, ao arriscar comparar João Paulo II e o Catolicismo, a Álvaro Cunhal e ao Comunismo. Desta forma simples e graciosa, Luis Rainha dá-nos a entender que terá lido, a seu tempo, Andrei Sinyavsky, ao sugerir, como o autor, que o Comunismo deve passar a ser visto como um sistema teológico, e não como um fenómeno político, ou, como afirmou Zinovy Zinik, que o Marxismo Soviético é Hegel e o Judaísmo-Cristianismo às avessas. Fechar parêntesis)

Depreende-se, desta frase, que "acreditar na mesma coisa toda uma vida" é uma virtude. Bestial. Bestial a lógica, porque a besta sou eu, que tenho acreditado "toda uma vida" que "acreditar na mesma coisa toda uma vida" não é sinónimo de "virtude". Isto é: não necessariamente. O meu avô acreditou, toda a vida, que o homem nunca pôs os pezinhos na lua. Que tudo não passou de truque hollywoodesco. A minha avó acreditou, toda a vida, na bondade do Sr. Salazar e no carácter malévolo do Sr. Cunhal. O meu amigo Marcelo, que cresceu comigo, ainda hoje acredita que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço (é aquilo a que se chama um "anti-comunista primário"). Sei que o pai de um meu ex-colega de liceu, continua a defender hoje, como há vinte anos atrás, a superioridade da raça branca e a expulsão dos pretos de Portugal. Pensava eu, em suma, que "acreditar numa coisa toda a vida" poderia ser sinónimo de muita coisa (casmurrice, coerência, estupidez, ignorância, determinação, fanatismo, etc.) mas não necessariamente de "virtude". Doggelpanger? Vou já.

Logo a seguir, Luis Rainha escreve: "é fácil a quem detém o poder ser coerente e apresentar a tal «determinação»". Dou comigo a pensar precisamente o contrário: regra geral, é mais fácil parecer-se "coerente" e "determinado" em registo de contra-poder, sobretudo quando esse registo está envolto de uma aura de cruzada contra as "injustiças" que grassam no mundo. Se há coisa que o poder ensina é a insustentável leveza das nossas "coerências", face à angustia da decisão e do seu exercício. Mas, tudo bem. Goppeldanger? Já de seguida.

Luis Rainha comenta a minha frase – "Cunhal foi um homem coerente mas foi-o, quase sempre, pelas piores razões" – colocando uma questão: "O que serão para esta alma as «piores razões»?". Esta alma poderá responder-lhe da forma que se segue. O apego à coerência, por parte de Cunhal, fê-lo ser conivente com um sistema e com um regime totalitário e assassino. Sim, é verdade que os ideais do comunismo – igualdade, justiça social, etc. - são incomensuravelmente mais apelativos do que, por exemplo, a defesa nazi da superioridade de uma raça sobre todas as outras. Logo, aparentemente, Cunhal esteve do lado certo. Mas o problema esteve, desde muito cedo, no facto de, na prática, a ideologia comunista significar uma coisa completamente diferente. O problema esteve no facto de, desde muito cedo, e face às evidências mais gritantes, muita gente ter optado por desvalorizar ou sonegar a barbárie soviética como nunca ousaria sonegar ou desvalorizar o holocausto, só porque, supostamente, combatiam ao lado dos "bons ideais". O problema esteve no facto de homens como Cunhal – que não eram propriamente estúpidos ou ignorantes - terem negado, cega e obcecadamente, a iniquidade de um sistema só porque "acreditar na mesma coisa toda uma vida", ainda por cima numa coisa tão "nobre", só podia estar certo. O "acreditar na mesma coisa toda uma vida", fê-lo branquear, sonegar e desvalorizar os horrores cometidos pela praxis comunista em todo o mundo, sobretudo na sua querida e mui estimada União Soviética, que o condecorou, apoiou e formou. A determinação de Cunhal fê-lo sonhar e lutar por um sistema cuja superioridade moral repousava sobre milhões de cadáveres. Nem um putativo salvo-conduto moral, por ter lutado contra a ditadura, o poderá salvar numa avaliação póstuma; nem uma suposta procuração, tacitamente entregue por todos os que sofreram às mãos de um ditador, o iliba desse comportamento irresponsável; nem o romantismo da "chama rebelde", da "resistência" e de todo um léxico "corporativo" ligada à causa comunista (as "massas", os "explorados", os "exploradores", o "proletariado", a "luta", etc.) escondem o calculismo presente na ideia de que os fins justificam os meios, que Cunhal sempre (repito: sempre) professou. Ao contrário de outros camaradas, que por isso foram por ele perseguidos, Cunhal foi o timoneiro da ortodoxia, do aparelho, da negação e da cegueira. Poder-se-á dizer que Cunhal não sabia. Ou que sabia e que, por isso, chegou a "estremecer". Ora, se estremeceu nunca o disse. Se estremeceu nunca o escreveu. Se estremeceu nunca o reconheceu publicamente. Isso, quer Luis Rainha queira, quer não, faz toda a diferença. O carácter das pessoas passa por aí.

Luis Rainha não admite que se suponha, à partida, que Cunhal nunca estremeceu. E pergunta: "Como saberá ele [VPV] que Cunhal nunca sentiu um íntimo estremecimento pelos desmandos do «bloco socialista»?". Luis Rainha renuncia à presunção dos outros, mas não se coíbe de presumir, imaginando, os "críticos póstumos" em "sossegadas e cómodas carreiras num qualquer ministério, se tivessem nascido num país sujeito ao «comunismo» de há umas décadas".

(Novo parêntesis. Repare-se nas deliciosas e esclarecedoras aspas a envolver o vocábulo comunismo. Luis Rainha deve ser dos tais que defende que nenhum país foi, até à data, sujeito ao verdadeiro comunismo, porque, obviamente, o verdadeiro comunismo é uma coisa fantástica. O que se pôs em prática foi o «comunismo». Não confundir com comunismo. Fecho parêntesis).

Do lado dos críticos, Luis Rainha dá azo à sua "imaginação" rectroactiva. Do lado de Cunhal, Luis Rainha esquece os factos e a história. Goggeldanper? Um momento.

Perto do fim, num assomo de dramatismo pungente, já a puxar a acidental lágrima, Luis Rainha pergunta: "Era feia e tristemente humana a vida de quem resistia? E depois? Somos nós melhores que eles só por isso?". Luis Rainha continua sem perceber que ninguém contestou a resistência de Cunhal à ditadura. Luis Rainha continua sem perceber que não se trata de ser melhor do que ele "só por isso". É Cunhal que não tem que ser melhor do que nós "só por isso". Até porque milhares de pessoas, não afectas ao PC, lutaram e sofreram em silêncio. A figura de Cunhal não tem, nem pode, subtrair-se à critica ou ao julgamento póstumos. Cunhal foi uma figura pública. Um líder político. Cunhal influenciou e entrou na vida de muita gente (dentro e fora do seu partido). Cunhal teve um aparelho que o apoiou e «tropas» que com ele lutaram. Cunhal foi responsável pela bagunça no pós-25 de Abril, que atirou o país para um atraso de décadas. Cunhal disponibilizou informação secreta à União Soviética. Cunhal não foi o Zé Manel dos Anzóis, nem o Chico das Iscas. Não foi um anónimo mortal, que nada fez e pouco disse num qualquer blogue ou jornal. Cunhal foi um símbolo e uma referência. Isso deveria exigir sentido de responsabilidade e um apego mínimo à verdade.

No fim, Luis Rainha acusa-me, encapotadamente, de cobardia e de inveja. Sim, claro. Ao contrário de Cunhal, não sou, nem nunca serei, alguém. Não passo de um reles loppedranger (vou já de seguida). Daí a inveja. Resta-me, ao menos, a pequena consolação de não ter mentido a um povo, nem apoiado o totalitarismo. Que, como se sabe, é só uma palavra. Consolação, aliás, própria de anões.

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