O MacGuffin

domingo, maio 29, 2005

"Tal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara, não para nele permanecer mas sim para sermos como que lançados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre, também ao longo do espaço de tempo que vai da infância à velhice nós vamos amadurecendo com vista a um novo parto. Espera-nos um outro nascimento, uma outra ordem das coisas. Por enquanto, não suportamos a vista do céu senão a uma certa distância. Encara, portanto, com coragem a tua hora decisiva, a hora derradeira apenas para o corpo, não para a alma. Os objectos que tens à tua volta, olha-os como bagagens numa hospedaria: tu tens de passar adiante. A natureza revista-te à saída, tal como te revistou à entrada. Não podes levar contigo mais do que trouxeste, pelo contrário, tens mesmo que despojar-te de uma boa parte do que trazias ao entrar nesta vida: ser-te-á tirado o teu último revestimento, a pele que te envolvia; ser-te-ão tirados a carne e o sangue que se espalhava e fluía por todo o corpo; ser-te-ão tirados os ossos e os tendões que serviam de sustentáculo aos tecidos moles. Esse dia que tu temes, como se fora o último, marca o teu nascimento para a eternidade. Depõe o teu fardo; porque hesitas, como se não tivesses já um dia abandonado um corpo dentro do qual te ocultavas?! Estás indeciso, relutante: também nesse dia foi preciso um esforço violento da tua mãe para que tu saísses. Gemes, choras: o choro é próprio do recém-nascido, só que nessa altura tinhas desculpa, como ser ignorante e inexperiente. Quando saíste do quente e suave ventre materno começaste por sentir o sopro livre do ar, chocou-te depois a dura pressão das mãos, e, tenra criança que eras, ignorante de tudo, olhaste espantado um mundo desconhecido. Agora, porém, já não é para ti novidade separares-te de um corpo de que antes fazias parte. Deita fora sem hesitação esses membros inúteis, põe de lado esse corpo em que por tanto tempo habitaste. Esse corpo será dilacerado, esmagado, destruído: porquê afligires-te? Sempre foi costume deitar fora as membranas que envolvem o recém-nascido! Porque te apegas a isso como coisa realmente tua? Estás revestido de um corpo, mas um dia virá em que o despirás, em que deixarás a companhia de um ventre sujo e fétido. Desliga-te dele quanto puderes, e desde já afasta-te do prazer que não seja…… e estritamente necessário; alheia-te deste mundo, e começa desde já a meditar em algo de mais profundo e sublime. Um dia virá em que se te desvelarão os segredos da natureza, em que se dissipará esta bruma e a toda a volta uma luz radiosa incidirá sobre ti. Procura imaginar a intensidade do brilho de tantos astros juntando num só clarão a sua luz. Sombra alguma maculará a serenidade do céu; todos os recantos do universo luzirão com igual esplendor: a alternância do dia e da noite só se verifica ao nível da nossa atmosfera interior. Quando contemplares com todo o teu ser a totalidade da luz – essa luz que agora reduzidamente recebes pelas estreitas aberturas dos teus olhos e que, mesmo assim, e de longe, tanto admiras! – dirás que até agora tens vivido em plena treva. Que aparência terá para ti a luz divina quando a contemplares no seu lugar próprio? Este pensamento não permite que se instale na alma o que quer que seja de sórdido, de rasteiro, de cruel; afirma-nos que há deuses, testemunhas dos nossos actos; ordena-nos que mereçamos a sua aprovação, que nos preparemos para o futuro, que nos prometamos a eternidade. E a quem concebe no seu espírito a ideia da eternidade, nenhum exército atemoriza, nenhum clarim guerreiro assusta, nenhuma ameaça causa medo! E como não se há-de estar livre do medo quando se espera a morte? Mesmo quem pensa que a alma só perdura enquanto se mantém vinculada ao corpo e que, quando ambos se separam, logo ela se desintegra, mesmo quem assim pensa age de modo a poder continuar a ser útil depois de morto. Embora o homem em si não o possamos ver mais,

“a grande virtude do herói, a grande nobreza da
sua raça continua a viver no nosso espírito”.
1


Pensa na grande utilidade que para nós têm os bons exemplos, e concluirás que a lembrança dos grandes homens não é menos útil do que a sua presença!"


1 Vergílio

Lúcio Aneu Séneca, in Cartas a Lucílio

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