O MacGuffin: “O Medo de Existir” dissecado

sexta-feira, abril 15, 2005

“O Medo de Existir” dissecado

(ou Explicado Às Criancinhas)
“Há certamente um «totalitarismo» próprio das «sociedades de controlo» (Foucault, Deleuze) actuais. A aplicação das novas tecnologias a todo o tipo de serviços, por exemplo, implica o imperativo de cumprir os regulamentos, sob pena de exclusão.”
A 12 de Março de 2002, José Gil tenta enviar, pela primeira vez, a sua declaração de rendimentos através do portal da DGCI. Após duas semanas de intensas mas infrutíferas tentativas, pensa, finalmente, tê-lo conseguido. Mas só aparentemente. Três dias depois recebe em casa uma ‘baixela’ Ideiacasa (123 peças), com a oferta de um espremedor de citrinos. “Foucault tinha razão: se tivesse sido a Baixela Pedro Alvares Cabral, ao invés da Infante Sagres, reuniria agora condições espistemológicas para ultrapassar este sentimento de profunda info-exclusão”. Como se depreende, não ultrapassou.

“A globalização acentua e generaliza este tipo de padrões únicos de comportamento – na necessidade de responder às exigências da produtividade do trabalho, de seguir as vias impostas pela funcionalidade dos serviços de saúde, de educação, de lazeres. Um exemplo emblemático já utilizado em Portugal, nos serviços prisionais, a pulseira magnética de localização à distância que o prisioneiro levará consigo sempre que se ausente da prisão. (Em breve seremos todos prisioneiros em liberdade, controlados à distância.)”
Na Primavera de 1978, em Paris, José Gil trava conhecimento com uma jovem roliça luxemburguesa (na altura a anorexia não era moda nem doença), durante um café au lait num bistro da moda. Poucas horas depois, envolvem-se num encantamento colérico que os leva, em registo de deboche quase sub-humano (na terminologia de Hannah Arendt), a práticas libidinosas que viriam a incluir a presença pró-activa de um conjunto de gadgets, de onde se destaca um par de algemas. Sem se aperceber dos propósitos malévolos da jovem luxemburguesa, Gil acede ao pedido da rapariga e deixa-se algemar à cama. É então que a rapariga roliça lhe saca, perante o seu olhar atónito e impotente, as obras completas de Deleuze, Foucault e Derrida (o dinheiro não lhe interessava). Nunca mais a viu. Desde então, pulseiras e algemas em sentido abstracto ou material, causam-lhe desconfiança e, por vezes, embaraço.

”Um dos efeitos mais subtis, poderosos e esquizofrenizantes do novo tipo de controlo que vai tomando posse da nossa vida quotidiana é a organização do espaço. Como já foi observado (Toni Negri, Michael Hardt, Império), é um espaço sem Fora: tudo se passa cada vez mais em vastos recintos de centros comerciais, de auditórios, de salas de conferências interactivas.
Mas, curiosamente, este espaço sem fora não se divide em territórios bem definidos, bem compartimentados e regulados. É um espaço
vago e fluente, onde os corpos circulam livremente, sem trajectos visíveis pré-determinados. O carácter paradoxal (e brutal) deste tipo de espaço que se generaliza por todo o planeta manifesta-se na desfasagem entre o movimento dos corpos e o seu fechamento, que o acompanha.”

A 14 de Junho de 2001, José Gil falha a inscrição no Clube de Pesca e Simiótica da Trafaria. Motivo: três dias antes, tinha visitado, pela primeira vez, o Centro Comercial Colombo e, sem saber muito bem como nem porquê, perdeu-se no emaranhado de ruas no interior-fora do edifício, não conseguindo alcançar o exterior-dentro. A confusão e o fechamento duram 73 horas, provocando uma desfasagem que o leva ao não-cumprimento do prazo de inscrição. A partir dessa data, o conceito de não-inscrição ganha uma dimensão feérica na obra do filosofo.

(continua…)

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Powered by Blogger Licença Creative Commons
Esta obra está licenciado sob uma Licença Creative Commons.