O MacGuffin

terça-feira, dezembro 09, 2003

O ARTIGO DA DISCÓRDIA
O Ensino Superior: Privilégios, Propinas e Prescrições
Por MARIA FILOMENA MÓNICA
in Público, Segunda-feira, 8 de Dezembro de 2003
“Ensino na Universidade há trinta anos. Ao longo deste período, tive contactos com alunos de feitios, origens sociais e competências diversas. Leccionei cursos de Sociologia, História e Literatura. Integrei o corpo docente de licenciaturas, mestrados e doutoramentos. Fiz parte de orgãos variados, da Presidência do Conselho Directivo do Instituto de Ciências Sociais a membro do Senado da Universidade de Lisboa. Julgo conhecer bem a Universidade portuguesa, pelo menos no que respeita as chamadas Humanidades. Sobre as Ciências Exactas, mantenho uma réstea de esperança.
O que não sucede na minha área. A ponto de este ano ter tomado a decisão de jamais voltar a ensinar. Sei que há colegas que pensam que sou elitista, "estrangeirada" e perfeccionista. Não aceito a classificação. Pela sua natureza, a Universidade é uma instituição que deve ser frequentada pela aristocracia intelectual, que tem como vocação a universalidade e que deve adoptar como critério a exigência. Não é isso que se passa em Portugal. Devido à irresponsabilidade dos governos, ao populismo dos parlamentares e à covardia dos docentes, a Universidade degradou-se para além do que é razoável.
No momento em que, na segunda metade da década de 1980, se aprovou, no Senado da Universidade de Lisboa, o Regulamento sobre o funcionamento das Faculdades, o qual garantia a presença de representantes do corpo estudantil no Conselho Directivo (seguindo ideias expressas na "Lei da Autonomia Universitária"), fui das pessoas - penso até que o fiz sózinha - a votar contra a proposta, tendo entregue na mesa, presidida pelo reitor Prof. Doutor Meira Soares, um voto, de vencida, no qual explicava os motivos que me levaram a agir daquela forma. Se, para mim, eram claras as razões por detrás das opções dos representantes estudantis, era-me incompreensível que colegas, muitos deles, como os catedráticos da Faculdade de Direito, situados politicamente à minha direita, se comportassem da forma como se comportaram. Já má, a situação piorou.
É possível que aquele gesto me tenha tornado impopular, mas nunca pensei que a minha missão na vida consistisse em ser amada pelos alunos. Cumpria-me tão só iniciá-los no mundo do saber. Eu tinha de preparar as lições, não faltar às aulas e despertar o interesse pela matéria leccionada; eles, de estudar, reflectir e pensar. Julgo que cumpri a minha parte do contrato; e, se os estudantes o não fizeram foi, em grande parte, porque o ethos das escolas a isso os não convidava. É difícil, a quem está de fora, imaginar até que ponto o "laxismo" penetrou as instituições do ensino superior. Hoje, pedir a um aluno para ler uma obra de ponta a ponta é quase impensável.
Sei que alguns dos meus alunos, especialmente os dos mestrados, eram estudantes-trabalhadores, tendo menos tempo do que os colegas para ler a bibliografia que lhes dava. Mas eu não podia ter em consideração esse facto, a não ser que estivesse disposta, o que não estava, a baixar a qualidade do curso. A minha severidade pode estar ligada, não o nego, a um factor pessoal. Excepto durante o primeiro ano, e numa época em que nenhuma protecção havia para este tipo de estudantes, fui estudante-trabalhadora, jamais me tendo passado pela cabeça que os professores me devessem amparar psicologicamente, como agora vem reinvindicar Miguel Teixeira, Presidente da Associação Académica de Lisboa. Limitava-me a aproveitar os tempos livres - as noites são compridas - para estudar o que devia.
Sempre defendi a introdução das propinas, embora perante o tipo de ensino que actualmente é oferecido aos alunos esteja quase a mudar de campo. Só se deve pagar o que tem valor e o ensino superior nacional não vale um caracol. Os principais responsáveis pela situação a que se chegou, é preciso declará-lo, são os professores. Muitos não preparam as aulas, exigem poucos dos alunos e faltam quando lhes apetece. O mais extraordinário é que, apesar das tentativas para facilitar a vida dos estudantes, ainda há quem chumbe. E não são poucos. Para acabar uma licenciatura de quatro anos, a média, no caso dos rapazes é de oito, no das raparigas, de seis anos. E há pior: metade dos estudantes uniersitários saiem do sistema sem qualquer tipo de diploma. Os custos, orçamentais, institucionais e pessoais, são monstruosos. Eis a razão pela qual as prescrições são absolutamente necessárias.
Perante a gravidade da situação, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, Adriano Pimpão, não encontrou nada melhor do que declarar ao "Diário de Notícias", de 15 de Novembro, que, "ao contrário de muita gente, não acho que o problema seja motivado pela falta de preparação que os estudantes trazem do ensino secundário, mas sim pela pedagogia utilizada no ensino superior", pelo que advogava o abandono "do excesso de aulas presenciais" e uma maior concessão de "autonomia" aos estudantes. Pelo caminho que as coisas estão a tomar, o Ministério da Ciência e do Ensino Superior poderá despedir todos os docentes - coisa que evidentemente contribuiria para diminuir o déficit - e entregar o dinheiro aos meninos e às meninas que, entre si, descobrirão uma maneira aprazível de se ensinarem uns aos outros.
No meio da polémica sobre as proprinas, ouviu-se, sottovoce, uma voz oficial declarando que a diferenciação dos montantes estava relacionada com a diferença na qualidade das instituições. O problema reside em saber como separar o trigo do joio. Em Portugal, optou-se pela via burocrática. Apareceram por aí umas comissões, compostas de peritos, "avaliando" as escolas e os centros de investigação, através de meios supostamente objectivos - grelhas confeccionadas à base do número de artigos publicados, do leque dos cursos e da variedade dos curricula - mas, numa sociedade pequena, provinciana e corrupta, como o é a portuguesa, o mecanismo caiu nas mãos de "lobbies" rivais, o que torna difícil a legitimação da nota.
O ideal para resolver este problema seria a diversificação do ensino superior. Contudo, herdeira da "reformada" instituição pombalina, a Universidade continua a defender que pagar salários diferentes a diferentes professores é impossível. Em Portugal, um docente universitário é um funcionário público: tem uma carreira com graus, recebe um salário independentemente do que faz e, no final, para o consolar, o Estado dá-lhe uns tostões para o subsídio de almoço. Isto não se passa em todos os países. Nas universidade americanas, por exemplo, há docentes que, sem que isso cause escândalo, recebem um salário mais elevado do que o auferido por colegas investigando no gabinete do lado. É evidente que não podemos enxertar no nosso sistema o clima concorrencial vigente além-Atlântico. Mas podemos e devemos meditar sobre a forma de ultrapassar um ensino atolado na uniformidade burocrática, na mediocriade intelectual e no desperdício de recursos.”

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