O MacGuffin

terça-feira, novembro 11, 2003

VASCO PULIDO VALENTE
Portugal, em… 1977:

A Universidade (?)
in Diário de Notícias, 13-5-1977
“Dizem os jornais que há outra crise na Universidade. E, nestas alturas solenes, deve o País ficar sumamente grato aos seus académicos, estudantes e professores, por tão simpáticos esforços. É que, se repararem bem, a única coisa que a Universidade tem de universitário são as crises. Só as crises acenam vagamente para a presunção de que se trata ali de gente adulta e alfabeta, gozando do justo privilégio histórico de desobedecer às autoridades do Estado, espatifar os dinheiros públicos e viver de falsos pretextos. Numa repartição ou numa fábrica, numa escola ou num bordel, certas cenas teriam um alto grau de probabilidade de acabar mal. Saber que as mesmas cenas, elevadas ao respeitável estatuto de crise, acabarão bem, assegura-nos sem margem para dúvidas que estamos em presença da Universidade.
Uma segurança que é, de resto, igualmente necessária ao governo. Se a Universidade não existisse, como a maior parte do tempo parece não existir, o Governo não podia reformá-la e ver-se-ia na desagradável obrigação de criar uma. Ora os governos não gostam de criar Universidades, mas adoram reformá-las, que é uma tarefa nobre e sentimental, feita a decreto, despacho e comissão, e tanto mais inocente quanto não serve para nada, nem se arrisca a inquietar ninguém.
Os pais entretanto, estão tranquilos. Na falta da Universidade ficavam sem sítio onde pôr os filhos, que modernamente são muito incomodativos. Assim, pelo menos, mantém-se a doce ilusão de que as crianças «andam a tirar o curso» para serem felizes e ilustradas quando forem crescidas, ganharem muito dinheirinho e mandarem os filhos deles para as crises da Universidade.
O pior é que, em Portugal, excepto talvez no célebre inconsciente colectivo, não há, nunca houve, Universidade. Em terras menos pitorescas, entende-se por Universidade uma comunidade de professores e alunos, dedicadas à criação e transmissão do saber. Percebe-se, como diria um Secretário de Estado, por onde passa o problema. Os vários barracões, estilo «grandeza nacional» ou «preconstruído», onde por aí se ministram umas palestras chamadas aulas, aspiram ao nome mas não correspondem à coisa.
Comunidades não são. Não são autónomas, não se auto-administram, não implicam a vida em comum de professores e alunos. Nuns quartos com filas de carteiras ocupadas por seres conhecidos como alunos, outros seres conhecidos como professores, nos curtos intervalos dos seus empregos, aliviam-se de umas frases. Fora isso, não se encontram, não conversam, não discutem. A estação do Rossio é uma comunidade mais coesa e solidária.
Os professores dividem-se em duas categorias fundamentais: os que deviam ser com urgência promovidos a alunos e os aceitáveis como professores. Os primeiros dividem-se ainda em duas espécies: os que confessam e os que disfarçam. Os que confessam costumam propor aos alunos «estudarem juntos» ou «vencerem juntos as dificuldades», mas raramente receberem juntos o ordenado. Os que disfarçam em vez de «darem» uma «cadeira», «dão» um livro (em Ciências Sociais geralmente cartilhas rançosas do marxismo como Poulantzas e Marta Harnecker) e, nos apertos, armam uma confusão verbal para cobrir a retirada. Quanto aos professores – professores contam-se pelos dedos os que têm tempo – e, ganhando um catedrático 15 contos por mês, ao fim de vinte sete anos de trabalho, quem pode censurá-los?
Os alunos, por seu lado, são um caso. Para se ser aluno das crises da Universidade basta ter passado pelas crises do liceu e apresentar certidão de nascimento, dez retratos, doze atestados de vacina e licença de motocicleta. Não é, por exemplo, preciso escrever sem erros de ortografia, ou estar ciente de que o predicado gosta de concordar com o sujeito, ou saber o que as palavras significam. Quase todos os alunos mostram, aliás, uma saudável embirração pela leitura, assaz prometedora para o desporto nacional, o concurso da Eurovisão de 1984 e os movimentos revolucionários do futuro.
O assunto da criação de ciência é, como se calculará, embaraçoso. Se descontarmos três ou quatro dezenas de extravagantes que persistem em fazer investigação, sem meios e sem dinheiro, com o propósito principal de estragarem a vida, o que há é o nada cheio de coisa nenhuma. As Universidades de Lisboa e do Porto nem sequer têm uma Imprensa Universitária; e o que a de Coimbra publica (p. e., a colecção dirigida pelo Prof. Silva Dias) não se vende em Lisboa por compreensível orgulho regionalista. Revistas, nem uma (excepto a Análise Social, que o Prof. Sedas Nunes salvou de sucessivos governos, com uma obstinação poética que ninguém lhe encomendou e ninguém lhe agradece). Em matéria de doutoramentos, a Universidade continua a abster-se num pudor todo feminino; o que só lhe fica bem e permite aos aspirantes à dignidade ir laurear para a Europa. Seria, efectivamente, absurdo esperar que a Universidade pensasse em Portugal. Em Portugal, pensa quem pode e copia quem deve.
E chegamos, assim, à transmissão do saber. É este o ponto mais crítico da situação. O saber vem tradicionalmente de Paris (e um pouco de Inglaterra e da América) para ser aqui produzido, plagiado e metido em artigos «intelectuais». Mas, ao preço a que anda o franco livreiro e com as complicações de divisas, nos dias que correm vem cada vez menos saber. Quando deixar de vir, não haverá maneira de transmiti-lo e a Universidade acaba fatalmente a grunhir. Mas por enquanto existe saber suficiente para seis meses de sebentas e prelecções, sobretudo no capítulo «transição para o socialismo», que particularmente nos interessa. É certo que, fora esse fascinante tema, quase tudo o resto que se ensina não tem a mínima relação com a sociedade portuguesa e com as suas presentes necessidades. Trata-se, porém, de um pequeno pormenor que só preocupa os fanáticos.
A Universidade? Não conheço.”

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