O MacGuffin

segunda-feira, outubro 06, 2003

DE VOLTA AO “MUNDO FANTASMA”
Ghost World é um daqueles filmes que entra, directa e irremediavelmente, para a categoria de “filme de culto”, sem sequer passar pela casa partida (ou seja, sem grande esforço). Primeira razão: é fidedignamente baseado na famosa BD de Daniel Clowes, facto que lhe confere uma imediata aura de «outsider». Mas há outras razões: excelente trabalho de casting, irrepreensível direcção e escolha de actores (Buscemi, Birch e Johansson estão sublimes), banda sonora assombrosa, fotografia discretamente inovadora.
Sucintamente, estamos na presença de uma comédia de sabor amargo: um retrato atípico e extremamente inteligente de um universo que, intermitentemente, tem sido responsável por muito do lixo hollywoodesco. Convenhamos: não é fácil retratar o angst juvenil sem cair nas soluções da praxe - fantasiosas e ficcionadas. Zwigoff e Clowes conseguem-no. Mas Ghost World não é apenas um filme sobre duas raparigas de 18 anos, na encruzilhada da maioridade.
Pelos olhos de Enid (Birch), passamos a observar um mundo recheado de idiotas, freaks, loucos, patetas alegres (as coleguinhas da escola e o próprio pai de Enid), impotentes do desejo e excêntricos (Seymour/Steve Buscemi). São estas as personagens que pontuam a vida de Enid e Rebecca (Scarlett Johansson), acabadas de chegar a uma espécie de limbo existencial. Sabem de onde vieram e sabem para onde não querem ir. Mas parecem não saber o que fazer das suas vidas. No fundo, Ghost World é uma fábula de realismo moderno, sobre o desconforto perante o crescente cretinismo no relacionamento humano, presente num mundo em decomposição onde nada mais é certo (o idoso que espera a carreira habitual do autocarro, entretanto desactivada, é disso um exemplo). Enid é, ela própria, um ser humano deslocado. É demasiado sincera para um mundo que premeia o cinismo e a hipocrisia. É demasiado realista para entrar na histeria e no delírio dos seus colegas quanto ao futuro. Não que não haja futuro. Ele existe, só que é sobeja e entediantemente conhecido. E formatado. Daí que o espectador acabe por vestir a pele da «anormal» Enid, observando o tal mundo fantasma: um mundo em desconstrução e declínio, tomado de assalto pela norma do politicamente correcto (a cena final com o cartaz da Coon Chicken Inn é paradigmática), do igualitarismo forçado, da competição desenfreada, da incerteza quanto às certezas formatadas.
Lê-se na apresentação do filme: “Alguma vez pensou ver o mundo de maneira diferente?” Vejam o filme.

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