O MacGuffin

segunda-feira, junho 16, 2003

O QUE FAZ CORRER ESTES INTELECTUAIS?

Observando as movimentações em torno do Fórum Social Português, confesso que senti um misto de intriga e divertimento perante as confissões dos intelectuais de serviço. Lá que os «jovens» e os «velhos-jovens» (repararam na Diana Andringa?), saudosistas das grandes utopias, se deixem embriagar pelo colorido das bandeiras e pelos slogans da praxe - lançados ao vento por meninas e meninos putativamente solidários e mutualistas, firmes e hirtos na convicção de que o «sistema» é para abater, embora profundamente demagógicos, ignorantes e pateticamente ingénuos - ainda vá que não vá. O que me deixa verdadeiramente divertido e intrigado é o discurso de certos intelectuais, supostamente munidos de uma clarividência e experiência para analisar o passado, presente e futuro da humanidade.

Quando oiço o Sr. Boaventura Sousa Santos e o Sr. Saramago falarem em “democracia de baixa intensidade”, “plutocracia”, “forma inútil de fazer política”, para classificar o actual estado civilizacional que se vive em Portugal, vacilo um pouco no divertimento. Confesso que a minha alma fica algo intrigada e ligeiramente apreensiva perante estas afirmações. Podemos classificá-las de ridículas e irresponsáveis, mas teremos, certamente, de as considerar perigosas (vide o excelente artigo de Maria Filomena Mónica no Público).

O problema não é novo. É, até, bastante antigo. Esta vertigem para a presunção por parte de quem parece estar a “ver o filme todo”, e o tipo de incitamento para a sublevação contra os “poderes fácticos”, insere-se na vastíssima história de ingerência do intelectual no campo da política.

O que faz correr estes intelectuais? Que forças empurram académicos e escritores, das mais diversas áreas, a levianamente se imiscuírem em terrenos apertados que manifestamente não dominam? O que faz correr o intelectual transformado em «filotirano», revelando um total desprezo pelo que, até agora, foi alcançado, em termos de organização social e política?

Para quem se debruçou meticulosamente sobre a história das ideias políticas, como foi o caso de Isaiah Berlin, existe um fio condutor que pode explicar em parte as questões aqui colocadas. Em livros como "Against The Current", "The Power of Ideais", ou "The Proper Study Of Mankind", podemos reparar na forma como Berlin, de forma convincente e fundamentada, através do estudo dos 'philosophes' mas também dos contra-iluministas, aponta o dedo para o corte abrupto produzido pelo Iluminismo na tradição e na religião cristãs europeias. O ponto de Berlin, também abordado por Oakeshott (embora Oakeshott recue até Descartes), é este: no meio de tudo o que de bom representou, o Iluminismo produziu também a assumpção de que todas as questões morais e políticas têm apenas uma única resposta e solução, todas elas compatíveis entre si, e que estas soluções só serão alcançadas através da Razão, custe o que custar. E quem melhor para exercitar a Razão que o intelectual?

Numa perspectiva distinta, há quem procure encontrar resposta às questões acima colocadas através da identificação de impulsos religiosos e irracionais, que se afastam, precisamente, da Razão humana. Ao contrário de Berlin, Jacob Talmon, por exemplo, afirma que o Sec. XVIII e XIX foram fartos não em doutrinas «racionalistas», as quais caminhavam no correcto sentido liberal e democrático, mas sim num novo fervor religioso e em expectativas «messiânicas» que imbuíram, incorrectamente segundo Talmon, as ideias democráticas modernas. Neste campo, o que se procurou evidenciar foram as relações, na prática, entre as modernas formas de tirania e os mais diversos fenómenos religiosos - como o misticismo, cabalismo ou o messianismo - que supostamente terão produzido a obsessão histérica e o fundamentalismo em torno de conceitos como "raça", “glorificação da violência revolucionária" como força purificadora, culto da personalidade, da iconografia, etc. Boaventura e Saramago seriam, assim, uma espécie de novos profetas, trabalhando para espalhar uma nova fé, baseada num "outro mundo" e num "novo homem".

Raymond Aron, por seu lado, aponta para outra perspectiva, baseada no exemplo francês. A França viu nascer e crescer, de forma exponencial, o fenómeno do comprometimento e empenhamento exacerbado dos intelectuais na vida política. Se os intelectuais vieram, e muito bem, ao terreno político no caso Dreyfus, pela mão de Zola, para pôr a nu a hipocrisia e a injustiça baseada no preconceito religioso/racial, a partir de certa altura essa ingerência dos intelectuais (escritores, cientistas, filósofos, etc.) no campo político foi produzindo os seus efeitos nefastos. Aron faz referência à forma perfeitamente irresponsável como os intelectuais em França deixaram de lado um sentido de proporção moral na análise da realidade e, 'en passant', se desresponsabilizaram do seu papel equidistante e independente no campo da política (Aron aponta o caso de Sartre como paradigmático, mas podíamos também falar em Derrida ou Foucault), deixando-se embebedar pelo romanticismo e despotismo das ideias.

Mas eu acho que, no caso do Sr. Boaventura Sousa Santos, do Sr. Saramago e de tantos outros, aplica-se a explicação de Mark Lilla para o fenómeno: o poder de 'eros', para o bem e para o mal, na prossecução das ideias. Sócrates explicou: o amor quer o bem mas também serve o mal. Isto porque o amor provoca a loucura, uma deliciosa e apelativa forma de loucura que nos é difícil de controlar, quer estejamos apaixonados por outra pessoa ou por um conjunto de ideias. A suprema felicidade só poderá ser alcançada se, de facto, essa loucura estiver sob controlo e sejamos capazes de tomar conta da nossa alma. É esse auto-controlo relativamente à força de 'eros' que representa o «core business» da actividade filosófica. Como Platão explicou, a vida filosófica é uma vida de erotismo controlado que espera alcançar aquilo que o amor inconscientemente procura: a verdade eterna, a justiça, a sabedoria. Poucos são os que são capazes de alcançar este equilíbrio e esta vida. A maioria acaba por ficar refém e escrava dos seus impulsos, perdendo o controlo da situação. É precisamente neste ponto que Sócrates identifica uma classe mais comum de almas tirânicas, corporizada não por chefes ou líderes, mas por professores, oradores, escritores - ou seja, o que hoje comummente designamos por «intelectuais». Estes homens, tal como o jovem Dionísio, são propensos a deixar-se queimar pelas ideias porque não conseguem dominar as suas paixões nem sair dos seus paradigmas. Eles pensam que são mentes independentes quando, na realidade, são guiados pelos seus demónios internos e pela vaidade de verem reconhecidas e aprovadas as suas ideias. Falta-lhes o treino pedagógico e a sua reputação depende da excitação das paixões, não do controlo das mesmas.

Isto serve, que nem uma luva, para explicar o comportamento de Boaventura Sousa Santos e Saramago. No fundo, estes intelectuais são uma e a mesma face do velho paradigma marxista de que o capitalismo e a sociedade burgueso-liberal conduzirão ao choque, à revolução, à mudança radical e libertadora – coisa que eles, caso lhes fosse dada a possibilidade, precipitariam e levariam às últimas consequências.

Por detrás do slogan “Somos Todos Terroristas”, esconde-se um radicalismo larvar e niilista, alimentado, ao longe, por certas cabeças que, vagueando por entre os corredores das universidades, sugam os meios que o sistema lhes proporciona para “espalhar a palavra”. No fundo, são «intelectualóides» a quem lhes falta o treino pedagógico, o sentido da realidade, a noção do ridículo e a honestidade intelectual para evitar o aproveitamento reles da insatisfação de certas franjas da sociedade. Acima de tudo, desconhecem, por completo, o que significa a humildade e o cepticismo em matéria de soluções gerais para humanidade.

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