O MacGuffin

quarta-feira, maio 28, 2003

O CANALHA

Já o disse, mais do que uma vez: gosto de Nelson Rodrigues. Recorro, frequentemente, a livros como “O Óbvio Ululante”, “A Cabra Vadia”, “O Reaccionário”, “A Menina Sem Estrela” ou “A Pátria em Chuteiras”. E, é claro, li “O Anjo Pornográfico”: a mais completa biografia de Nelson Rodrigues, escrita por Ruy Castro – a tal que Ricardo de Araújo Pereira desvalorizou (mesmo sem a ter lido), revelando pura desonestidade intelectual.

Vem isto a propósito da polémica entre Ricardo de Araújo Pereira (RAP) e Pedro Lomba (ou terá sido com o Pedro Mexia?), em torno da figura de Nelson Rodrigues – a qual tenho assistido embevecido. Sobre a questão, permitam-me dizer ‘algo’ (Ambrósio).

Da polémica, retenho, à partida, a capacidade de resistência e a paciência evidenciadas por Pedro Lomba (PL). Tiro o chapéu à forma como PL se permitiu perder o seu tempo (deu para ver que foi perda de tempo, desde o início) com uma pessoa que esteve, continuada e despudoradamente, a atacar de forma moralista, imprecisa e desonesta Nelson Rodrigues.

RAP, que eu não conheço pessoalmente, parece-me uma pessoa inteligente. Será, certamente, boa pessoa. Tem um sentido de humor louvável para os tempos que correm, co-responsável por um dos melhores blogues da blogosfera lusitana. Mas esteve muito mal nesta questão.

A forma como RAP retirou do contexto – da crónica e da época – frases avulsas de Nelson para, de forma sumária e moralista, o acusar de simpatizante de ditadores e de conivência com totalitarismos, revela má-fé. Só por má-fé e ressentimento, ou por ignorância da obra e vida de Nelson Rodrigues (como parece ser o caso de RAP), se poderá retirar conclusão tão grosseira e abjecta. Uma conclusão, diga-se, previsível no caso da pessoa ser uma ferrenha e empedernida adepta de uma qualquer ideologia – especialmente à esquerda. A esquerda «pura e dura» jamais perdoará a Nelson o seu trabalho de desmascaramento da doutrina e do «modus operandi» do marxismo-leninismo e do socialismo, numa época em que era preciso ter coragem para o fazer (não agora, que vivemos em tempos de meninos-copos-de-leite).

Não sei se o maniqueismo e a presunção vã e gratuita incomodam RAP, na mesma medida em que me incomodam a mim. Não sei se RAP é ferozmente contrário a qualquer tipo de totalitarismo. Presumo que sim. Por tudo isto, e por acreditar na Moral e detestar moralismos, gostei, desde a primeira hora, de Nelson Rodrigues. Com o passar do tempo (e dos livros) a minha admiração por Nelson foi crescendo e jamais foi abalada. Inteligente, controverso, corajoso e livre de espartilhos ideológicos, Nelson Rodrigues foi um grande humanista. Um coração enorme que amava o seu Brasil e as suas gentes, como poucos. Leia-se, por exemplo, “A menina sem estrela” (ed. Companhia das Letras) e facilmente se constatará a forma realista e desassombrada como Nelson sofria os problemas do seu país. Acima de tudo, a forma inebriante como ele amava o brasileiro. Nelson Rodrigues teve uma vida trágica, repleta de sofrimento. Nunca beneficiou do poder político. O seu filho chegou a ser preso e torturado (por ironia...). Nunca o vimos em campanhas ou em tomadas de posição intransigentes. Terá dado a sua opinião sobre este ou aquele facto político. Terá feito as suas opções quanto ao futuro do Brasil. Mas nunca o seu apoio a este ou àquele dirigente, foi feito com base na ideologia, na doutrina, no interesse mesquinho e pessoal, na sabujice própria de um lambe-botas. Quanto muito, algumas das suas posições foram, consideradas agora à distância, ingénuas.

Observemos, então, o que Nelson escreveu a 28 de Janeiro de 1970. A crónica, publicada no Globo, intitulava-se “Esporas e Penachos”, e foi dela que RAP retirou algumas frases para julgar sumariamente Nelson Rodrigues. Eis a crónica na integra:

”Não há nome intranscendente e repito: qualquer nome insinua um vaticínio. Todo o destino de Napoleão Bonaparte está no seu cartão de visitas. Ao passo que um J. B. Martins da Fonseca não tem nenhuma destino especial e vou mais longe: não tem destino. Quando baptizaram William Shakespeare, o padre poderia perguntar-lhe: “Como vão tuas Obras completas?”. No simples “William Shakespeare” estava implícita a música verbal do seu teatro.
Mas um certo nome exige uma certa cara. Napoleão Bonaparte pedia um perfil napoleónico. Um Gengis Khan precisa de fotogenia. Ou então um John Kennedy. O que era o presidente assassinado senão o queixo forte, plástico, histórico? Ele venceu Stevenson e depois Nixon porque tinha as mandíbulas crispadas do Poder. Por isso, o tiro arrancou-lhe o queixo. Outro: Churchill, com a sua maravilhosa cara de buldogue. Em todos os citados, cara e nome, justapostos, explicam uma nítida pre-destinação.
Fiz essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente. Quando começou o jogo de candidaturas, disse eu: “Ganha esse, pelo nome e pela cara”. Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu Médici. Tiremos o Emílio e fica Garrastazu. Tiremos o Garrastazu e ficará o Médici. Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e até delirante. Não importa, nada importa. Depois vi a sua fotografia. Repeti, na redacção, para todo o mundo ouvir: “É esse o presidente”. Ora, numa redacção há sempre uns três ou quatro sarcásticos. Um deles perguntou: “Só pelo nome?”. Respondi: “Pelo nome e pela cara”.
Como já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula, de selo. Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos presidentes são baixos. Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um perfil histórico e, digamos, cesariano. Epitácio foi fisicamente pequeno. Era a pose que o fazia mais presidencial. Garrastazu Médici é o nosso primeiro presidente alto.
Dirão vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o fantasista. Desculpem o meu possível equívoco. E se me perguntarem porque estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando: conheci, Domingo, o presidente Emílio Garrastazu Médici. E o pretexto para o nosso encontro foi um jogo de futebol.
Outra singularidade do chefe da nação: gosta de futebol e sabe viver, como o mais obscuro, o mais anónimo torcedor, todas as peripécias dos clássicos e das peladas. Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na história dos presidentes brasileiros. Imaginem um Delfim Moreira, ou um Rodrigues Alves, ou um Wenceslau Brás entrando no estádio Mario Filho. Qualquer um desses perguntaria: “Em que time joga o Fla-Flu?”, “Quem é a bola?” ou “O córner já chegou?”.
O nosso presidente sabe tudo de futebol. Eu diria que hoje nenhum brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o futebol. Mas dizia eu que foi um jogo – São Paulo X Porto – que nos aproximou. Na sexta-feira passada, o Palácio das Laranjeiras começou por me procurar. Se eu fosse terrorista, não seria tão perseguido. Finalmente, falo pelo telefone com o Palácio. O secretário de Imprensa queria me transmitir um convite. Onde e a que horas poderia falar comigo? Marcamos o encontro. Simplesmente, o presidente Médici me convidava para assistir, a seu lado, na inauguração do Morumbi, o jogo internacional. Eu iria, com S. Exa., no avião presidencial. O presidente fazia o maior empenho em que o acompanhasse.
Confesso, sem nenhuma vergonha, que o convite me fascinou. O que têm sido as nossas relações com os presidentes da República? Nada. Sim, há entre nós e o presidente uma distância infinita, espectral. E o Supremo Magistrado, como se diz, é um ser misterioso, inescrutável, sinistro. NO meu caso, o presidente se dispunha a acabar com a distância e me receber na áspera solidão presidencial.
De mais a mais, o Brasil vive o seu grande momento. Eis o nosso dilema: o o Brasil ou o caos. O diabo é que tmeos a vocação e a nostalgia do caos. É o momento de fazer o Brasil ou perdê-lo. Esse Garastazu Médici é, neste instante, uma das figuras vitais do país. Eu ia vê-lo, ia ouvi-lo. Sim, ouvir os ruídos da sua alma profunda. Todo o mundo tem, no bolso do colete, o seu projecto de Brasil. Garrastazu tem o seu e pode realizá-lo. Ao passo que n´so não temos força para tapar um cano furado. Bem. Aceitei o convite, ressalvando: iria de tudo, menos de avião. “De automóvel?”, perguntou o secretário de Imprensa. E eu: “De qualquer coisa” - e repeti – “nunca de avião”.
Sábado, o meu filho Nelson levou-me para São Paulo no seu Fusca. Durante a viagem, uma pequena mas intolerável inibição instalou-se em mim: “Chamarei o presidente de ‘excelência’ ou simplesmente de ‘senhor’?”. Ao mesmo, imaginava que o Poder desumaniza o homem. Seria Garrastazu uma figura áspera, hierática, enfática? Pensava, ao mesmo tempo, num episódio recente. No jogo do Grémio, e antes de ser presidente, e antes da definição das candidaturas, o general Garrastazu Médici desce ao vestiário. Vejam se vocês conseguem imaginar um Delfim Moreira, ou um Epitácio num vestiário de futebol. Pois o general chega e pergunta: “Como é, Alcino, que você vai me perder aquele gol?”. No Fusca do meu filho Nelson, eu queria crer que um homem assim é um brasileiro vivo e não uma pose, e não uma casaca, e não uma faixa, e não uma condecoração.
No dia seguinte, estava eu no aeroporto. Tivemos uma primeira conversa e, durante o dia, uma outra, e uma terceira, e uma quarta. Vi a seu lado a inauguração (ou a décima inauguração do Morumbi). Ora, no momento não há nada mais importante do que saber o que pensa, o que sente, o que imagina, o que quer um presidente da República, investido de tantos poderes. No meio do jogo, ele insistia para que eu voltasse no seu jacto. Digo, por fim: “Está certo, presidente. Vou voar pela primeira vez”.
É preciso não esquecer o que houve nas ruas de São Paulo e dentro do Morumbi. No estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, como dizia o outro, vaia-se até mulher nua. Vi o Morumbi lotado, aplaudindo do presidente Garrastazu. Antes do jogo e depois do jogo, o aplauso das ruas. Eu queria ouvir um assobio, sentir um foco de vaia. Só palmas. E eu me perguntava: “E as vaias? Onde estão as vaias?”. Estavam espantosamente mudas.
Até Domingo, às seis e meia, sete da noite, eu não entrara jamais num avião pousado, num avião andando, num avião voando. Lá em cima, não há paisagem; e, se não há paisagem, estamos fazendo a antiviagem. Conversámos longamente. Houve um momento em que ele me disse: “Sou um presidente sem compromissos. Só tenho compromissos com a minha pátria”. Eis um homem que fala em pátria, em “minha pátria”. Para a maioria absoluta dos civis, “pátria” é uma palavra espectral, “patriota” é uma figura espectral. E as nossas esquerdas fizeram toda a sorte de manifestações. Não berravam, não tocavam na “pátria”. Nas passeatas, berravam, em cadência: “Vietnã, Vietnã, Vietnã”. Pinchavam os nossos muros com vivas aos vietcongs, a Cuba. Nenhuma alusão à pátria, nenhuma referência ao Brasil. E, no entanto, vejam vocês: o Amazonas tem menos população do que Madureira. Aquilo é uma gigantesca sibéria florestal. E as esquerdas só pensavam no Vietnã, e só pensavam pelo Vietnã e só bebiam pelo Vietnã.
Certa vez, conversei com um membro da esquerda católica. Exortei-o a desembarcar no Brasil. Disse-lhe que, na pior das hipóteses, temos paisagem. Citei o Pão de Açucar, o Corcovado. Mas ele batia na tecla obsessiva e fatal: “O Vitenã, o Vietnã, o Vietnã” etc. etc. Ainda no meu élan paisagístico, fiz a apologia da Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista argentino. Mas havia entre mim e ele a distância que nos separa do Sudeste Asiático. Eis o que o meu amigo propõe: que os brasileiros bebessem o sangue uns dos outros como groselha.
Antes de se despedir, o membro da esquerda católica concentrou sua ira nas Forças Armadas. Acusou-as de incapazes, de ineptas, de relapsas. “Os militares nunca fizeram nada”, afirmou. Desta vez, perdi a minha paciência. Tratei de demonstrar-lhe que os militares fizeram tudo. No Sete de Setembro (e Pedro Américo não me deixa mentir) foram sujeitos de esporas e penacho que deram o grito do Ipiranga; e, se os militares não fizeram nada, que faz a espada de Deodoro na estátua de Deodoro? Foi a inépcia militar que fez a República, assim como fizera a independência. Em 22 e 24, era o sangue militar que jorrava como a água, a água da boca dos tritões de chafariz. Em 30, em 32, em 35, foram os militares. Assim em 89. Retirem as Forças Armadas e começará o caos, o puro, irresponsável e obtuso caos.
Há anos e anos que eu não digo “pátria”. E quando o presidente Garrastazu falou em “minha pátria”, experimentei um sentimento intolerável de vergonha. Esse soldado é de uma natureza simples e profunda. Está disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Brasil. Seja como for, deixará este nome, para sempre: Emílio Garrastazu Médici.”


Perante certas frases contidas nesta crónica, RAP decidiu. Julgou. Condenou. Assim, sem mais nem menos. Ai ele disse isso de um homem (Médici) que serviu uma ditadura? Conjure-se. Cuspa-se sobre o infame. Mas, dirão alguns, não poderia Nelson pensar, para a época e para as circunstancias própria do seu país, que aquele homem representava a melhor (quiçá a única) opção? O mal menor? Perante o clamor por Cuba, Fidel e Marx, não terá sido legítima a opção de Nelson? E o facto de Nelson, passado dois anos da data da publicação desta crónica, se ter arrependido de ter apoiado Médici, não significa nada?

Nada disso interessa ,decretou RAP.

E a obra de Nelson: é para cilindrar? A sua profunda e emocionante paixão pelo povo brasileiro: não prestou? A sua verve, o seu sentido de humor, a sua erudição e a sua ironia contagiante: peanuts? A sua luta pela liberdade de expressão, pelo desprendimento ideológico, pelos desfavorecidos: para o lixo?

RAP parece não hesitar: o polegar aponta para baixo.

Ora, eu termino com uma questão. Segundo consta, RAP é militante/simpatizante do Partido Comunista Português. Gostaria de saber se ele não terá, no passado (ou no presente), defendido Lenine, Trotsky ou Estaline? Sendo comunista, não terá sido, pelo menos no passado, conivente e benevolente com certos regimes totalitários de inspiração marxista-leninista – como o foram, em 99% dos casos, os militantes e simpatizantes do Partido Comunista Português? E se, hoje em dia, RAP já não repete esse apoio ou essa colagem a essa figuras (por ter crescido, por ter aprendido, por ter errado) isso não deve, nem pode, significar nada?

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