O MacGuffin

quinta-feira, maio 15, 2003

CENDREV, BRECHT & CO.

O meu amigo Zé Luis protesta:
“Não posso deixar de fazer uma observação às tuas considerações sobre o CENDREV e a peça "Baal" que felizmente tive oportunidade de ver (além do mais porque nela participava um grande amigo meu, Vitor Correia):
- A peça é extraordinária e conta com o desempenho fabuloso de Miguel Borges, seguramente um dos melhores actores da actualidade, a quem apenas faltará a voz de um Luís Miguel Cintra.
- O CENDREV desde que existe (1975) levou a cena apenas 8 peças de Bertolt Brecht:
"Espingardas da mãe Carrar"
"Canções da Insuficiencia da aspiração humana"
"Homem por Homem"
"Lux in Tenebris"
"O senhor Puntilla e seu criado Matti"
"Porque é que o meu nome há de ser nomeado?"
"O que diz sim, o que diz não"
"A venda do pão"
- O autor mais representado é de longe o nosso bem português Gil Vicente (será que também era de esquerda????)
-Devias ficar satisfeito de ser possível presenciar na nossa cidade espectáculos da qualidade do oferecido pelos Artistas Unidos e não te agarrares a preconceitos ideológicos, que, neste caso, até nem têm razão de ser, se é que alguma vez têm.”


Caro Zé Luis: preconceito ideológico? Onde? Definitivamente, os esquerdistas têm a mania da perseguição e o sentido de humor não lhes é familiar. A única crítica subentendida nos meus comentários, sobre a peça “Baal”, de Brecht, são ao nível das opções e critérios do CENDREV na hora de escolher os dramaturgos – em meu entender as suas escolhas têm sido monocórdicas, a temática repetitiva e os projectos pouco ambiciosos (daí ter feito referência à falta de “diversidade”, mesmo que me apresentem as estatísticas da praxe).

Quem falou em ideologia? Mesmo sabendo que o Brecht é muito querido à esquerda, só o mencionei por uma questão de oportunidade ou, se quiseres, ‘timing’. Isto porque se anunciava a estreia da peça “Baal” – que eu julgava ser uma produção do CENDREV. Por sinal, a encenação, desta vez, estava a cargo da companhia Artistas Unidos. Valha-nos, ao menos, essa ironia.

Afirmas que o CENDREV encenou “apenas” oito peças do Brecht. De acordo. Apenas? Não são assim tão poucas. Convinha especificar quantas vezes foram levadas à cena e por que período estiveram em cartaz.

Como tu bem referiste, peguei em Brecht como poderia ter pegado em Gil Vicente. O que interessa salientar é que as razões nada tiveram que ver com questões ideológicas. Isso seria, no mínimo, um tremendo dislate. No fundo, as razões são bem mais simples e objectivas. Partem de um simples eborense, leigo em matérias teatrais mas, ainda assim, no direito de criticar.

Mas já que falas em “ideologia”, podemos ir por aí. Concordarás – tu, que és eborense e conheces bem a realidade da nossa mui nobre cidade - que a Câmara Municipal de Évora (CME) e o CENDREV conseguiram um feito assinalável, numa cidade que tem apenas um teatro (o belíssimo Teatro Garcia de Resende (TGR)): afastar os eborenses do mesmo. A forma como a CME, durante o longo consulado do PCP à frente dos seus destinos (foram 25 anos!), deixou o TGR – um teatro municipal - refém do CENDREV, espelha bem a forma doentia como a esquerda, principalmente a esquerda da linha dura, considera como instrumental esta coisa da cultura e das artes vivas. E reflecte bem até que ponto a promiscuidade entre a CME e o CENDREV foi quase obscena.

Assim, no caso concreto, a culpa tem de ser repartida. Por um lado, foi um erro colossal da CME permitir que o CENDREV fizesse do TGR a sua própria casa. Ainda hoje, em Évora, para o comum eborense, o CENDREV é o TGR e o TGR é o CENDREV. Raro é o munícipe que dissocia uma entidade da outra, quando, na prática (e não só no papel) elas deveriam ter estado sempre bem separadas. O TGR deveria ter sido um teatro muncipal, de todos, e não uma espécie de albergue para amigalhaços.

Por outro lado, os responsáveis do CENDREV deveriam ter tido a visão e a humildade de pensar que, sendo a única companhia teatral da cidade, subsidiada com o dinheiro de todos, era de bom senso e de importância vital ter-se empreendido uma programação teatral em jeito de serviço público, englobada numa visão estratégica com pés e cabeça, i. e., percorrendo vários géneros teatrais, levando à cena peças essenciais da história do teatro, ou seja, se a palavra não te ofender, clássicas. Brecht, Gil Vicente, Goldoni ou Moliere poderão ser considerados como tal? De acordo. Nem sequer vou discutir isso. Mas e os outros? Quantas vezes o CENDREV encenou Shakespeare? Duas. Henrik Ibsen? Uma. Tchekhov? Nenhuma. Oscar Wilde? Nicles. Eliot? Zero. O que dizer de uma companhia que esqueceu, durante 25 anos, Beckett? Por último, pretenderás convencer-me que o critério e as escolhas do CENDREV não foram, ao longo dos anos, varridos por um forte cunho político-ideológico?

Dir-me-ás que uma companhia teatral deve ter a sua própria identidade, o seu estilo e linha estética. Mais uma vez, de acordo. Mas, sendo assim, não deveria a CME e o seu executivo ter acautelado isso? Não deveriam ter deixado espaço e meios para trazer a Évora outras companhias, outros dramaturgos (coisa que o fez esporádica e timidamente)? Ou, então, ao contrário: não deveria o CENDREV ter sido mais humilde e atento ao facto de, sendo a única companhia da cidade, ser sua obrigação prestar um serviço público à comunidade, chamando a si projectos que levassem à cena os clássicos, as obras obrigatórias, (outros) dramaturgos de referência? (imagino que estejas a perguntar: quem definiria quais seriam as obras clássicas...)

Para terminar, voltemos à referida ironia da peça “Baal”. E a ironia é só esta: agora que estão no poder os que criticaram, e em certa medida bem, o CENDREV pela falta de diversidade e pela instrumentalização política da sua actividade; agora que se pretende libertar o teatro municipal para outros eventos e companhias, novos dramaturgos (inclusivamente contemporâneos) eis que se acolhe a vinda de uma companhia de teatro forasteira para apresentar uma peça de... Brecht. É caso para perguntar: os assessores culturais da CME estão a gozar connosco ou estão a dormir?

PS: escusado será dizer que, qualitativamente, nunca pus, nem ponho, em causa o CENDREV. O seu corpo técnico (encenadores, cenógrafos, etc.), os seus actores e actrizes nunca estiveram em causa – são todos profissionais e, alguns deles, excelentes (embora com o tempo os melhores tenham desertado). O mesmo se aplica aos Artistas Unidos. O que está em causa é uma coisa bem diferente. Quem não percebeu que volte a ler.

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