O MacGuffin

sexta-feira, abril 04, 2003

A GUERRA, II
Quem, por esta altura, aterre no planeta Terra e ligue as televisões, chegará a esta conclusão: existe um conflito bélico num país do médio-oriente, onde uma coligação anglo-americana está a levar uma «coça» de um exercito liderado pelo seu grande líder Saddam Hussein. Constatará, igualmente, que a esmagadora maioria dos mísseis da coligação erram o alvo, acertando em população civis («danos colaterais» é o termo em voga), não se sabendo se de propósito ou se por azelhice. Finalmente, constatará que, para a coligação, o conflito já deveria estar arrumado há uma semana, não fosse a «coça» a que entretanto foram sujeitos.

Falando um pouco mais a sério, não deixa de ser patética a forma como as opiniões públicas, em geral, consideram a guerra, hoje em dia, como algo asséptico, cientifico e de rápida resolução. Embora nenhum militar ou responsável militar norte-americano ou inglês, tivesse dito, uma vez que fosse, que esta guerra seria de curta duração e que não haveria erros, a verdade é que a opinião pública ocidental achou por bem concluir que esta guerra seria «limpa», duraria uma semana (afinal Saddam estava desarmado, não estava?), e que a população iraquiana saudaria, desde o primeiro dia, a chegada dos libertadores.

É essencial perceber que uma ditadura de décadas deixa a marca das suas patas na população. Existe sempre uma franja assinalável da mesma que serve a ditadura, alimentado-se sob o seu tecto. Isto é particularmente aplicável nas grandes e médias cidades, onde o regime tem os seus pilares de propaganda instalados. Alie-se a isto uma propaganda de décadas onde os americanos foram, e são, retratados como animais, demónios e ladrões (de petróleo), o receio das populações em aderir ao lado contrário quando são bombardeadas diariamente com notícias de que o «inimigo» está a ser derrotado, e talvez se perceba o que se passa no terreno. Deixemo-nos, pois, de afirmações de espanto. As coisas são o que são e a realidade é bem mais dura e concreta que meia dúzia de parágrafos de uma dúzia de «opinion makers» que, refastelados na sua chaise-longue, de guerra pouco ou nada percebem.

Esta guerra está unicamente a durar o que está a durar (que não é pouco nem muito), porque a estratégia é evitar ao máximo o número de vitimas civis. Estivesse a Rússia à frente da operação com os meios de que dispõe a coligação e, talvez, já tivéssemos assistido, tal como em Grozny, à «vitaminização» do ar (vitaminas B1, B2 e B52), a aplicar indiscriminadamente sobre toda a população. Mas não. Por muito que custe aceitar aos anti-americanistas mais ferrenhos, há que reconhecer que este conflito tem sido travado com pézinhos de lã, por parte da coligação. Os erros, lamentáveis mas inevitáveis, são mínimos, se os compararmos a conflitos anteriores.

Mas o que se poderia esperar de uma comunicação social que, à conversa com Sérgio Vieira de Melo, Alto Comissário da ONU, lhe perguntava se ele estava apreensivo com a forma como os prisioneiros iraquianos estariam a ser tratados, esquecendo que são os militares iraquianos que têm vindo a quebrar de forma indecorosa o estabelecido na convenção de Genebra? O que esperar de uma comunicação social que repete, ad nauseam, as imagens de um erro de bombardeamento da coligação, quando as notícias de assassinatos, perpetrados pelo militares iraquianos contra quem mostrou vontade de desertar ou apoiar as tropas anglo-americanas, nem sequer têm eco? O que dizer de uma comunicação social quando um repórter, no local onde tinha erradamente caído um míssil da coligação, e após o anuncio de um inquérito para averiguar o incidente, afirmava, sem margem para dúvidas, que restava apenas saber se o bombardeamento tinha sido o resultado de um erro ou a face mais visível da deliberada estratégia de terror sobre populações civis, como resposta aos reveses da guerra? Pouco há a dizer a não ser isto: a coligação pode estar a ganhar clara e inequivocamente a guerra no terreno, mas os EUA e a Inglaterra há muito que a perderam na comunicação social. Só mesmo um milagre poderá inverter esta tendência.

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