O MacGuffin

sexta-feira, março 21, 2003

MICHAEL OAKESHOTT E O RACIONALISMO

Passagem da obra “Rationalism in Politics”:

“Não há muito tempo, os espectadores que assistiam às corridas de cavalos eram sobretudo homens e mulheres que percebiam, em primeira mão, de cavalos, tratando-se, neste campo, de pessoas genuinamente educadas. Deixou de ser assim, à excepção, talvez, da Irlanda. O espectador ignorante, sem habilitações, inclinação ou oportunidade para se educar a si próprio, e procurando uma saída para as suas congeminações, exige agora um “Livro”. (No sec. XX, a voga dos livros sobre culinária deriva, sem dúvida, de uma situação similar). Os autores de um desses livros, “Um Guia Para Os Clássicos - Ou Como Escolher Um Vencedor”, cientes da diferença entre conhecimento técnico e conhecimento completo, esforçaram-se para realçar que havia um limite para além do qual não existiam regras precisas na escolha dos cavalos vencedores, e que seria necessária alguma inteligência. Alguns dos leitores mais gananciosos e racionalistas, na senda de um método infalível, com o qual (como preconizou Bacon) se colocaria a baixa sabedoria dessas pessoas a par da de outras verdadeiramente instruídas, julgaram ter sido vigarizados – o que acaba por provar que eles teriam empregue melhor o seu tempo se o tivessem gasto a ler Sto. Agostinho e Hegel, em vez de Descartes: je ne puis pardonner à Descartes.”

Michael Oakeshott foi um dos maiores filósofos do sec. XX, autor de uma obra notável, percorrida por uma coerência e originalidade raras e avassaladoras. “Rationalism in Poltitics” foi inicialmente publicado em 1962 e constitui aquele que, para mim, é o melhor ensaio que li até hoje sobre o papel e a influência do Racionalismo no pensamento político, ao longo dos últimos séculos. “Rationalism in Politics” representa uma devastadora critica sobre o uso e abuso da razão na vida política.
A sua análise recaiu sobre o racionalismo acrítico e não sobre o valor orientador e necessário da racionalidade, na exacta medida em que esta trata do uso da razão no reconhecimento fundamental dos condicionalismos do conhecimento humano. A falácia do Racionalismo assenta não no reconhecimento do conhecimento técnico, mas na incapacidade de reconhecer e valorizar outro tipo de conhecimento, atribuindo uma certeza dogmática à técnica e à doutrina da soberania da técnica. Se o conhecimento técnico é susceptível de formulação em regras, princípios e instruções, se pode ser redigido e transcrito em livro, já o conhecimento prático não poderá ser aprendido mas antes ‘adquirido’ ou ‘assimilado’ de forma distinta. A origem do Racionalismo é difusa mas podemos encontrá-la em Francis Bacon e Descartes. Embora a sua obra tivesse sido percorrida por um leve pessimismo (mais em Descartes), relativamente às putativas virtudes da técnica sobre a experiência e a prática, a verdade é que este corpo filosófico deitou à terra sementes para a posterior ascensão da onda Racionalista. Não foi inócua a ideia, desenvolvida por estes autores, de que seria condição obrigatória a introdução de métodos de purgação intelectual sobre o conhecimento adquirido e a posterior e salvifica criação de modelos teóricos, abstractos e supostamente infalíveis de planeamento e organização social. A emergência do Racionalismo foi particularmente corrosiva para com a influência e importância da realidade social concreta e da tradição (importância que Burke, um século mais tarde, reconheceria quando se referiu à “parceria” entre os vivos, os mortos e os que estão para nascer). Como Oakeshott explica, o Racionalismo esteve sempre na origem de todas as doutrinas políticas tendentes à centralização e ao igualitarismo – desde a concepção jacobina e monista de organização da sociedade (por exemplo na forma como os ‘philosophes’ abençoaram os déspotas iluminados no processo de imposição de regras próprias de comportamento político a uma população), passando pelo fenómeno das ideologias (Marx e Engels encabeçaram, já no sec. XIX, um novo fôlego para o Racionalismo, na criação de uma doutrina cujo objecto seria o curso da história - passada, presente e futura - insistindo nas duas fraquezas fetiche dos Racionalistas: 1) não conseguir tocar numa coisa sem a transformarem numa abstracção; 2) darem-se mal com o imponderável). Os vícios e virtudes políticas foram, assim, com o passar dos séculos, profundamente infectados pela onda racionalista, na exacta medida em que o Racionalismo deixou de ser um estilo em política para passar a ser o critério estilístico predominante. A marca do Racionalismo pode ser notada no facto de, a partir de certa altura, passar a constituir condição obrigatória a existência, no sentido restrito, de uma doutrina. A crença generalizada de que a política é uma actividade fácil, carreirista, que pode ser conduzida ‘by the book’ é, ela própria, a evidência clara de que a política do Racionalismo (ao fim ao cabo a política actual) é a política dos inexperientes.
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