O MacGuffin

sexta-feira, março 21, 2003

ENSAIOS DE CONFIANÇA

Fim-de-semana passado, de molho. Constipação inusitada. Tempo para ler. Retirando aleatoriamente da estante um livro, saiu-me “Reliable Essays” de Clive James. Bom, neste caso reler.

Dois ensaios marcam, em meu entender, este precioso livro: um sobre Evelyn Waugh, a propósito da publicação, em 1980, das cartas do pai de Auberon, e “The All of Orwell”, publicado no New Yorker em 1999. Nota 20.
Coincidência ou não, tinha há pouco tempo revisitado passagens do “Orwell’s Victory” do Chris Hitchens. Será heresia dizer que o Clive James, em apenas 20 páginas, consegue ofuscar a totalidade do livro de Hitchens? Heresia ou não, é essa a minha opinião. James consegue condensar em poucas páginas tudo o que interessa saber sobre a personalidade fascinante de Orwell: as suas contradições, a sua evolução política e, acima de tudo, a coragem. Ao contrário dos seus colegas esquerdistas ocidentais, Orwell debateu-se, desde muito cedo, com um conflito interior que o viria a afastar radicalmente da complacência, e até mesmo conivência, com que os left-wingers ocidentais olhavam o regime soviético – facto que eles nunca lhe perdoaram. Embora socialista, os seus ideais políticos mantiveram-se sempre em conflito, na retaguarda. James explica de forma magistral como, a partir de 1943, Orwell vai reconhecendo os seus erros, ao admitir estar errado na necessidade de uma «revolução», ou ao admitir que uma economia planificada à maneira socialista levanta problemas no que respeita às liberdades individuais. E James vai ao pormenor de reparar como, a partir de certa altura, Orwell passa a ter o cuidado de se referir ao “socialismo” como “socialismo democrático”. Peça à peça, Orwell foi evoluindo, foi crescendo e foi dando conta disso mesmo nos seus artigos e livros – facto que revela lucidez e honestidade intelectual. Não é por acaso que, nesse mesmo ano (1943), Orwell faz uma recensão tolerante ao “Road to Serfdom” de Hayek – quando se esperaria uma crítica feroz a um livro que arrasa, como poucos, o mito do socialismo e das economias planificadas. Embora nunca tivesse desistido desse ideal de planificação e centralismo económico, Orwell teve a humildade de, com o pouco tempo que lhe restava de vida, reconhecer algumas das iniquidades dos ideais em que acreditava. É essa a grandeza moral de Orwell e é essa a fraqueza moral dos que criticavam Orwell e insistiam cegamente num ideário errado, que a evolução do mundo viria a revelar a céu aberto.

Apesar da sua admiração por Orwell, Clive James não deixa de referir que, até ao fim dos seus dias, Orwell insistiu em dois erros: sobrestimar o potencial das pessoas enquanto colectivo, as quais ele pensava estarem de mãos atadas face ao sistema capitalista, e, por outro aldo, subestimar a individualidade de cada pessoa. James está certo em lembrar que Orwell, na sua crítica à forma imoral como os cientistas não recusaram participar no trabalho de desenvolvimento da bomba atómica – ele acreditava mesmo que eles deveriam ter recusado tal trabalho – , omitiu o facto de muitos desses cientistas serem refugiados europeus dos regimes totalitários, que trabalhavam na bomba não só de livre vontade mas com pressa e ansiedade, convencidos, e muito bem, de que tinham de ganhar essa corrida a Hitler.

Mas há uma frase de Orwell, sobre a visão complacente da maioria dos intelectuais face ao regime soviético e ao comunismo, que é fulminante: “The direct, conscious attack on intellectual decency comes from the intellectuals themselves.”

Touché!

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